São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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A Torre do Grou Amarelo de Li Po a Mao Tse-tung

HAROLDO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A poesia clássica chinesa, escrita numa linguagem especialmente afeiçoada à arte do poema (um verdadeiro "idioleto poético"), toca de perto os ocidentais que nela se debruçam por sua concisão, pelo sentimento de inacabado, de sustentada surpresa, de aforismático vigor aliado à plasticidade visual da imagem. De Pound a Kenneth Rexroth; do pioneiro expressionista Klabund a Brecht, do português macauense Camilo Pessanha ao francês Claudel e ao mexicano Octavio Paz, importantes poetas modernos sentiram o seu impacto e seduziram-se por suas peculiaridades únicas.
Os problemas de tradução que propõe essa poesia, escrita em caracteres ideogrâmicos e organizada segundo rigorosos critérios métricos e prosódicos, numa língua-música dotada de quatro diferentes tonalidades, são, como se pode imaginar, desafiadores a um ponto extremo.
Como fazer para que essa poesia, procedente de uma linguagem isolante, monossilábica, de sintaxe posicional, resulte eficaz em idiomas analítico-discursivos, mais lógicos do que analógicos, mais hipotáticos do que paratáticos?
Num ensaio do início de fevereiro de 1969 (coligido em meu livro "A Arte no Horizonte do Provável"), propus, inspirando-me nas idéias de Fenollosa e Ezra Pound, mas recorrendo também a outras fontes (Yu-Kuang Chu, E.H. von Tscharner, R. Jakobson, W. Mc-Naughton), os seguintes critérios de trabalho: a) exame do texto original, com auxílio de versões intermediárias; b) estudo dos principais ideogramas, para desvelar neles, dentro das balizas semânticas lexicalizadas, o casulo metafórico, etimológico-visual, suscetível de aproveitamento poético; c) manter a concisão sintática e o característico paralelismo; d) tirar partido dos recursos tipográficos de espacialização na página, usando, inclusive, de modo sistemático, composição em caixa-baixa. As "transcriações" ou "reimaginações" que realizei ao longo dos anos estão, hoje, reunidas em "Escrito sobre Jade - 22 Poemas Clássicos Chineses" (1996, edição artesanal, bilíngue, do tipógrafo-poeta Guilherme Mansur, de Ouro Preto).
Volto agora a tratar do assunto, para apresentar algumas novas incursões tradutórias no campo, num arco temporal multissecular, que vai de Ts'ui Hao e Li Po, da dinastia T'ang (618-907), até Mao Tse-tung. O líder revolucionário chinês, como se sabe, praticava com mestria a arte poética da tradição clássica ("wenyan"), assim como dominava a escrita caligráfica, em que eram exímios os poetas chineses (entre os quais não faltavam poetas-pintores, como Wang Wei).
No ensaio "Le Langage Poétique Chinois" ("La Traversée des Signes", obra coletiva, Seuil, 1975), trabalho que antecipa, em parte, o conteúdo de seu livro "L'Ecriture Poétique Chinoise", o sinólogo e poeticista François Cheng compara um poema de Mao, escrito em 1956, "Retorno a Shao-shan", com outro de Tu Fu (712-770), "Evocação do Passado", ambos na forma "lü-shi" (dois quartetos, cada um compreendendo dois dísticos, uma oitava, portanto).
Seu propósito é fazer sentir a "notável continuidade" entre os procedimentos poéticos de ambos os autores (o paralelismo; o recurso a imagens que podem adquirir "uma grande força emblemática"). Mais adiante abordarei a controvérsia que suscita o paradoxo estético da poesia do "chairman" Mao, ou seja, o fato de o líder comunista ter escrito no estilo clássico, que ele dominava por sua formação cultural, e não na linguagem corrente ("baihua"), introduzida na poesia e na prosa com a revolução literária de 1917. Desejo, aqui, abordar mais especificamente o problema da tradução poética, tomando como exemplo poemas correlacionáveis da época T'ang e do poeta e chefe de Estado contemporâneo, convergência surpreendente, que atesta a pervivência de uma longa e vetusta tradição.
A Li Po (701-762), cognominado pelo poeta Ho Tche-tchang (659-744), seu contemporâneo, "o imortal exilado na Terra", dedicou Tu Fu, outro notável poeta do tempo, vários poemas. Estreitamente ligado, por afeto e devotada admiração, a seu amigo mais velho de uma década, com quem travara conhecimento pessoal na primavera do ano 741, Tu Fu exaltou-o em vida e deplorou-lhe a morte. Dentre esses poemas, um dos mais belos, escrito em 761 (à época, Li Po vivia exilado em Yunnan), é uma composição de 20 versos, de 5 caracteres cada, formando 5 quartetos. Um dístico rutilante (final da primeira quadra) define soberbamente a arte inigualável do amigo e mestre (o "eremita do lótus verde-azul", como Li Po a si mesmo se designava):
"ao toque do pincel de bambu
o vento e a chuva galopam
assim que terminas o poema
deuses e demônios choram".
Estes dois versos, entre outros, belíssimos, são justamente salientados pelos tradutores, a dupla Cheng Wing Fun e Hervé Collet, até no título da antologia que dedicam ao poeta (Tu Fu, "Dieux et Diables Pleurent", Moundarren, 1987). A tradução francesa diz: "ton pinceau se pose, provoque vent et pluie,/ ton poème achevé, dieux et diables pleurent".
Em minha "transcriação", desdobrada, a exemplo do original, em dois dísticos, procuro recuperar algo da concretude visual do chinês, reorquestrando sua música (impossível de transmitir como tal) com os recursos da língua portuguesa (combino versos de 8 e 7 sílabas; configuro harmonizações na vertical: tônicas de tOque e galOpam, de bambU e ChUva; rimas assonantes: galOpAm/chOrAm. Recupero no ideograma PEI (em francês, vertido por "pincel") o sema de "bambu" (trata-se de um pincel de escrever feito desse material) e, no caráter WU ("provocam"), a idéia de galopar, dicionarizada, já que esse ideograma complexo envolve o pictograma (desenho abreviado) de "cavalo". O "galopar" metafórico do temporal (vento e chuva) parece-me mais efetivo do que a idéia abstrata de "provocar" um fenômeno atmosférico. No dístico, assIM ressoa em terMINas e poEMa em dEMônios (o ideograma correspondente exibe uma curiosa etimologia visual: "pessoa agachada, usando máscara mortuária").
Relata a crônica biográfica que Li Po, visitando, certa vez, a legendária "Torre do Grou Amarelo", em Hupei, situada numa elevação a cavaleiro do Yang-tse, teve o desejo de escrever um poema, tocado pela beleza da paisagem. Deu, porém, com versos de outro autor, inscritos no muro. Era uma composição de Ts'ui Hao, seu contemporâneo. Li Po achou-a tão perfeita, que pôs de lado o pincel de bambu, exclamando que não seria capaz de superá-la.
O poema de Ts'ui Hao, "A Torre do Grou Amarelo", foi minuciosamente analisado e traduzido, literal e literariamente, por François Cheng. Motiva-o a crença tradicional de que um ancião (um velho sábio? um monge-santo taoísta? o filho de um imperador do século 6º antes de nossa era?) elevara-se ao céu a partir da Torre, montado num grou amarelo, para nunca mais voltar à Terra. Esse núcleo temático acabou convertendo-se num topos da poesia clássica. No poema, Ts'ui Hao utiliza três vezes a imagem evocativa do grou, como "símbolo da imortalidade perdida", em oposição à vacuidade do "mundo humano". O poema se organiza por meio de oposições em contraponto, paralelisticamente. Por exemplo, o grou, veículo da imortalidade, é substituído, no final do terceiro dístico (o poema tem quatro, está escrito na forma "lü-shih"), pela alusão ao periquito, pássaro "ornamental e imitador", símbolo do "mundo terreno", segundo F. Cheng. Em minha "transcriação" (comparei-a com as de F. Cheng, Paul Demiéville e Willer Byne, mas tive sempre em vista o original chinês), usei as técnicas que venho expondo e defendendo.
O primeiro ideograma do primeiro dístico (HSI), que transmite a idéia de "tempo passado", constitui-se da superposição de traços (indicando "amontoado de coisas", "acúmulo") sobre o pictograma de "sol" (JIH), ou seja: "inúmeros dias" ("muitos anos"). Resolvi explicitar a imagem solar, já que "sol" reaparece no início do quinto verso (no ideograma CH'ING, "ensolarado", "claro") e, por duas vezes (JIH MU, "sol-pôr"), no início do sétimo. Esta repetição expressiva (uma "rima" visual) serve para assinalar a oposição do mundo real, terreno, ao mundo ancestral, ao tema da imortalidade. A condição "terrestre" está registrada nas notações mutáveis da paisagem sazonal.
No último verso, que F. Cheng traduz por "homem coberto de tristeza", utilizei, de modo metonímico (e também metafórico), a palavra "coração", desencasulada do ideograma CH'OU ("outono sobre o coração", "tristeza", "melancolia", "amargura"). Mantive a tríplice repetição da imagem do grou (F. Cheng, que sublinha a importância desse efeito na construção do poema, não o reproduz). Procurei, também, conservar algo dos "qualificativos duplicados" do original. Assim: YU-YU ("longe longe"); LI-LI ("vívidos vivos", a nitidez do reflexo das árvores na água ensolarada); T'SI-T'SI ("tufos e tufos", a espessura e a disseminação da relva perfumada).
Mas Li Po, apesar de sua relutância, não conseguiu afastar de todo o desejo de celebrar a "Torre do Grou Amarelo". Aproveita, para fazê-lo, o ensejo que lhe dá a despedida do amigo poeta Meng Hao-jan, que viaja do oeste (do sítio onde fica a torre), para Kuang-ling, no leste. Consultei a tradução de Wai-lim Yip ("Chinese Poetry", 1976), que verte o poema literal e literariamente; a de Paul Demiéville, que o traduz e analisa como uma das "obras-primas da poesia em quadras do tipo impressionista, chamada em chinês versos interrompidos" ("a idéia se propaga ao infinito quando a palavra cessa").
Há também a versão de Claudel (discursiva, no estilo-versículo do poeta francês, refugiando à concisa sintaxe chinesa, mas ainda assim interessante) e a da dupla Wing Fu/Collet. Em oposição a "oeste" (HSI na primeira tonalidade/ "pássaro recolhido no ninho ao sol-pôr"), terceiro monossílabo do primeiro verso, extraí "leste" do caráter que significa "partir" ("deixar"). Segundo Yip, há posicionalmente, no contexto, a conotação "ir para leste". Não me vou deter aqui sobre os detalhes de orquestração. Quero, apenas, salientar que o final do último verso da quadra comporta três ideogramas:
"céu fim correr".
Ou seja: "Flowing into the sky" (W.-li yip); "qui coule à la rencontre du ciel" (Demiéville); "couler au bord du ciel" (Wing Fu/Collet). Em minha transcriação: "que deságua no céu", optei por dar visibilidade etimológica ao sema de "água", que ocorre duas vezes no original (nos radicais dos ideogramas de "rio" e de "correr"). Sintaticamente, o paralelismo "dissolvido no azul"/"(que) deságua no céu" é quase tão conciso como em chinês, a cada ideograma do original correspondendo uma palavra em português (descontada a partícula relativa "que"); teria sido possível usar o gerúndio ("desaguando"), mas preferi deixar mais evidente no plano sonoro o étimo "água".

Continua à pág. 5-7

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