São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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A Torre do Grou Amarelo de Li Po a Mao Tse-tung

HAROLDO DE CAMPOS

Mao sobrepõe ao "locus classicus" a nota de seu empenho ativista; não há nostalgia do além

Do poema de Li Po (designado por Rihaku, à maneira japonesa das anotações de Fenollosa), Ezra Pound fez uma de suas personalizadas recriações, uma das jóias de sua antologia "Cathay" (Londres, 1915), que "inventou a poesia chinesa" em inglês "para nosso tempo" (Eliot). Apesar das polêmicas que suscitou, "Cathay" consagrou-se na recepção literária mais alerta e sofisticada, tendo, inclusive, influenciado tradutores-sinólogos como Arthur Valey ("Chinese Poems", Londres, 1916). A coletânea foi minuciosa e compreensivelmente estudada por Wai-lim Yip ("Ezra Pound's Cathay", 1965). Yip mostra como EP operou em "Separation on the River Kiang" (nome que dá à sua transposição). A técnica de Pound é oposta à de Claudel: ele suprime palavras e se apura na concisão do resultado, enquanto o poeta francês alonga e expande o original. "The long King, reaching heaven" (O longo King, alcançando o céu") é a bela solução poundiana para o último verso do quarteto chinês.
Acompanhando a migração do topos, outro poema que tematiza a torre do grou amarelo é o de Wei K'uen (1646-1705), no qual há uma alusão crítico-irônica à relutância de Li Po em emular os versos de Ts'ui Hao. Wei K'uen, por seu lado, não hesita em fazê-lo, soando a "flauta de ferro" taoísta e embriagando-se de vinho. Baseei-me nos ideogramas do texto original, mas pude consultar também a versão de Demiéville.
Dando um salto para a atualidade, passo a enfocar o poema que sobre o tema escreveu Mao Tse-tung, após visitar em Hupei, na primavera de 1927, o celebrado local. Vali-me basicamente da tradução (literal e literária) de Wang Hui-Ming ("Ten Poems by Mao Tse-tung", 1975), mas consultei outras versões em inglês: a da equipe de tradutores da Foreign Language Press, de Pequim ("Mao Tsetung Poems", 1976) e a de Willis Barnstone ("The Poems of Mao Tse-tung", 1972).
Barnstone, poeta-ensaísta norte-americano, é mais conhecido como tradutor de poesia grega clássica e de língua espanhola, mas foi coadjuvado em sua incursão chinesa por um especialista, Ko Ching-po. Utilizei ainda, para confronto, a versão espanhola de José Palao, baseada sobretudo na do sinólogo italiano Girolamo Mancuso (Ediciones Jucar, 1972). O poema, no original chinês, está escrito no estilo "tzu" (versos rimados, destinados a ser cantados, segundo esquemas melódicos predeterminados), originário da dinastia T'ang, apresentando um elaborado padrão rítmico-tonal. Mao se vale das palavras "duplicadas" da poesia tradicional, começando a oitava, composta de versos de 7 sílabas-ideogramas, com a expressão MANG MANG, que verti por "vastas vastas"; o segundo verso, em paralelo, inicia-se com CH'EN CH'EN, que em português ficou "fundo profundo".
Dos tradutores consultados, Palao (Mancuso) e a equipe de Pequim procuraram manter a duplicação ("anchurosos anchurosos" e "profundo profundo"; "wide wide" e "dark dark"). O efeito vale por uma virtual hipérbole. A imagem da linha fundamente incisa, como num mapa geográfico ideal, que "alinhava" o país (China), unindo-o de norte a sul, alude à ferrovia Pequim-Hankou. Os "nove rios" são os afluentes do Yang-tse. Tartaruga e Serpente, duas elevações que flanqueiam o rio, são comparadas a "ferrolhos" (ideograma SO), pois mantêm seu curso sob proteção. No penúltimo verso, aparece uma nova "palavra duplicada" (T'AO T'AO, torrente; "bubbling water", Barnstone; "surgent torrent", equipe de Pequim). Procurei captar esse efeito, traduzindo-o compensatoriamente por uma rima interna, anagramática, entre VINHO e torVelINHO. No terceiro verso pude recuperar, por meio do sintagma "vagueando vaga", a repetição T'SANG T'SANG, que dá idéia de algo "velado em neblina" (W. Hui Ming).
Dos outros tradutores, só Palao (Mancuso) tenta manter a fórmula chinesa ("verdes verdes, confusos"). Disseminei pelo poema aliterações, harmonizações consonantes ou assonantes, rimas etimológicas ("afluentes fluem"; "linha... alinhava"), afim de compensar, de algum modo, a complexa estrutura prosódica do original. A rima etimológica "afluente/ fluir" corresponde ao par de ideogramas P'AI ("afluente", "rio tributário") e LIU ("fluir", "correr"), que partilham o mesmo radical pictogrâmico, SHUI ("filetes de água corrente"). Aliás, o sema de "água", de "fluência líquida", percorre visualmente todo o poema: está em MANG MANG, em CH'EN CH'EN, em CHIANG ("rio", último caráter do quarto verso), em YU ("viajar", terceiro do sexto), CHIU ("vinho", segundo do sétimo), T'AO T'AO (a "palavra duplicada" que conclui este mesmo verso) e, finalmente, no verso final, em C'HAO e LANG ("maré" e "onda").
O jogo de étimos, no nível verbal, visa, quanto possível, a compensar esse aspecto, no nível visual, característico do chinês. Aspecto a que o poeta, cabe supor, não seria insensível, já que Mao é também admirado como calígrafo. Seu estilo, segundo opina o tradutor W. Hui-Ming, que é também artista plástico e professor de arte, seria uma combinação expressiva de duas formas de escrita da tradição chinesa, recordando a arte caligráfica singular do poeta e pintor Cheng Hsieh (1693-1765).
Comparando os poemas de temática relacionada, as marcas diferenciais no que diz respeito ao de Mao, até onde posso percebê-las, estão, sobretudo, no nível semântico. O texto de Ts'ui Hao conclui por uma nota de amargura e pela nostalgia de uma pátria celestial, da vida sublimada dos imortais, embora nele perpasse o registro paisagístico da beleza transeunte da Terra. No poema de Li Po, predomina o sentimento de saudade pelo amigo que parte, a melancolia da separação, mas a nota celestial, o anelo de imortalidade e a aspiração ao infinito, o "estranhamento platônico" que Pound teria vislumbrado nele (Yip), estão presentes. No poema de Wei K'uen, chama a atenção a alusão irônica ao reconhecidamente incomparável Li Po, já que W. K'uen, em seu texto, propõe-se realizar o que o "imortal banido" receara tentar. A ousadia do poeta seiscentista em seu cometimento é, por assim dizer, explicada no penúltimo verso por um estado de embriaguez aliado ao embevecimento taoísta (a música da "flauta de ferro"). No último, acaba por se associar à nostalgia do céu ("Para voltar, pedirei aos celestes um grou amarelo"). Wei K'uen, que põe em dúvida a condição de "gênio imortal" em Li Po (Ts'ing Lien, nome da cidade natal do poeta), aspira, ele próprio, às prerrogativas da imortalidade...
Já Mao Tse-tung, o então jovem poeta-militante dos anos 20, sobrepõe ao "locus classicus" a nota de seu empenho ativista. Não há nostalgia do além, não há rapto místico em seu dístico terminal. O poeta faz um brinde ao ímpeto das águas tumultuadas do Yang-tse. No coração, ao invés de amargura vagamente outonal, a maré alta do impulso combativo, o encapelar-se da vocação rebelionária. W. Barnstone, vendo no penúltimo verso uma alusão ao poeta-calígrafo Su Tung-po (Su Shih, 1036-1101), ao poema em que este saúda o reflexo da lua no rio, recordando heróis mortos, toma a discutibilíssima decisão de explicitar este suposto nível conotativo em sua tradução. Na realidade, a alusão a Tung-po intervém, de maneira mais clara, em outro poema de Mao, "Neve", traduzido, aliás, de maneira bastante livre e lacunar por Brecht, com a omissão inexplicável de dois relevantes símiles (montes nevados vistos como "serpentes-dançarinas de prata"; altiplanos comparados a um "tropel de elefantes de cera").
Sou tentado a cotejar mais duas composições, não necessariamente vinculadas entre si, uma de Li Po ("No Templo do Mais Alto Cimo"), outra do "chairman" Mao, o poema "Escrito numa Foto da 'Gruta dos Imortais' Tirada em Lushan pelo Camarada Li Chin".
O poema de Li Po, traduzido literal e literariamente por F. Cheng (recorri também a outras fontes), é uma de suas celebradas e belíssimas quadras. Nele, o "eremita do lótus azul" descreve quase um ascenso aos céus, a partir do templo situado num pico elevado, que lhe permite como que apalpar as estrelas. O sentimento de proximidade dos imortais é tão intenso que o poeta T'ang receia falar em voz alta, para não perturbar a "gente celeste". Um poeta ocidental, como este tradutor, lê inevitavelmente um certo tom irônico no contraste entre o ousado tatear da mão erguida e a fala em voz baixa, imposta pelo temor reverencial. Assim, fechei minha tradução com uma fórmula de recomendação polida, corrente em nossa língua: "Favor não perturbar as pessoas do céu".
Quanto ao poema de Mao, também uma quadra, um "chueh-chu" de 28 caracteres, foi inspirado por um cenário de alturas montanhosas, de picos escarpados, pela contemplação de um sítio celebrado como a "Gruta dos Imortais" (Hsien-jen tung). O ideograma T'IEN, inclusive, que traduzi em sua acepção de "natureza", poderia ser vertido por "céu", como o fazem Palao (Mancuso), Barnstone e Philippe Sollers.
O grande problema, para efeito de interpretação e versão, é a linha final, cujos ideogramas significam: "sem limite" (WU-HSIEN), "vento" (FENG), "luz" (KUANG), "em" (locativo, TSAI), "perigo" (HSIEN), "pico elevado" (FENG). Traduzi-a por: "na desmesura luz-vento/ de inacessíveis alturas", apoiando-me fonicamente numa rima interna (inVENTO/ VENTO) e na rima interna entre "desmeSURA" e "altURAS". Havia pensado, também, em algo como "esplendor vento e luz/ do píncaro mais altivo", mas pareceu-me importante dar relevo à idéia de "inacessibilidade" ("periculosidade"). Neste verso, fica registrado de modo sintético, em pinceladas metonímicas, o excesso de limites, a grandiosidade do local, de difícil acesso, batido pelo vento e irradiado de luz. Abstratamente, há quem substitua aqui os ideogramas originais pela idéia de "cenário incomparável" associada à de "beleza natural" (W. Hui Min; Wong Man -não está clara a atribuição da tradução- "Ten More Poems of Mao Tse-Tung", East Horizon Press, Hong Kong, 1967).

Continua à pag. 5-8

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