São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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A Torre do Grou Amarelo de LI Po a Mao Tse-tung

HAROLDO DE CAMPOS

Continuação da pág. 5-7

A versão de Sollers, estampada no nº 40 (inverno de 1970) da revista "Tel Quel", então em seu momento febricitante de celebração maoísta (atualmente, dissolvida a revista, o volúvel escritor francês, inclinado à direita, vive uma fase de "catolicismo anárquico"), merece uma consideração à parte. A técnica de traduzir usada por Sollers (exposta brevemente no nº 38, verão de 69, de "Tel Quel") corresponde a critérios assemelháveis àqueles por mim defendidos no artigo programático de fevereiro de 1969. Somente, ao que me parece, falando especificamente da tradução deste poema, sobre o qual me detive minuciosamente, o escritor francês tende, antes, a um literalismo cru, sem maiores preocupações de orquestração prosódica, mais à maneira de Amy Lowell e Florence Ayscouth (rivais epigônicas de Ezra Pound) do que ao modo poundiano de "Cathay" e das "Odes" confucianas.
Assim, a linha final do quarteto é vertida da seguinte forma (composição em minúsculas, sem nenhuma tentativa de espacialização gráfica): "sans bornes vent et lumières à pic" ("sem limites vento e luzes a pique"), equivalentemente à tradução literal de W. Hui-Ming: "limitless wind light at dancer pic".
O sema de "perigo", a sensação resultante da "dificuldade de acesso", extraída do ideograma HSIEN (algo que procurei expressar por meio do adjetivo "inalcançáveis", qualificativo de "escarpas"), perde-se -é omitida- na versão francesa. No entanto, esse matiz semântico parece-me relevante, decisivo mesmo, para estabelecer o "tonus" temático do poema contemporâneo. Em vez do sentimento de sublimação taoísta, de expatriação do céu, atenuado por uma nota de familiaridade para com a "gente celeste" no imaginário do poema escrito por Li Po, Mao, que compôs seu poema em 1961, deixa-se, é verdade, impressionar pela beleza natural do sítio legendário, engendrado, gerado, "inventado" pela Natureza (ideograma SHENG).
Este sentido de "força natural" acaba se sobrepondo ao de céu, referência que parece, no contexto, recuar para o bastidor do termo. O poeta, porém, ao contrário de Li Po, não imagina elevar-se, num rapto de êxtase, à "Gruta dos Imortais". Na desmesura de luz e vento da paisagem montanhosa ao pôr-do-sol, o poeta chefe de Estado, já com 68 anos, todo-poderoso, cultuado, mas talvez reminiscente das árduas jornadas da Grande Marcha, registra, em especial, a periculosidade dos píncaros inóspitos, aparentemente inacessíveis, infranqueáveis. Está como que a ponderar, com determinação obsessiva de estratego, partidário da "revolução permanente", sobre a maneira de vencer a dificuldade com o esforço humano, de tornar possível o impossível.
Estas observações não significam que o empreendimento tradutório do ex-líder "telquelista", inovativo em língua francesa, deixe de oferecer soluções de interesse (como, aliás, opina Mancuso, ao relatar a polêmica travada entre Sollers e a sinologia tradicional, representada por Guy Brossolet).
Alberto Moravia, escrevendo o prefácio à antologia de Mancuso, entende que Mao se havia utilizado, para seus fins, de formas e temas da poesia clássica chinesa, introduzindo neles, com "espírito iconoclástico", sentimentos e coisas do presente, de nosso tempo. Assim explica o paradoxo da escolha de um estilo letrado, de molde tradicional, por um poeta-estadista que, expressamente, não desejava ver sua maneira de fazer poesia adotada como modelo pelos jovens, e que relutou em publicar suas produções por temer sua influência negativa nesses poetas jovens, acoroçoando-os, antes, a escrever no estilo "moderno", em língua corrente e numa linha de realismo proletário (carta de 1957 à redação da revista "Shigan"; discurso sobre literatura e arte em Yenan, 1942).
No que diz respeito à avaliação estética dos poemas do "Chairman" da nova China, W. Barnstone pensa que "o papel histórico de Mao não nos deve deixar cegos à força originária e à beleza de sua poesia". Prefaciando suas traduções, Barnstone compara Mao ao poeta norte-americano Robert Frost, estimado cultor da simplicidade, entre moderno e tradicionalista. Mancuso prefere suspender o julgamento, argumentando que qualquer valoração crítica só poderia ser feita sobre o original, já que no caso extremo de uma poesia como a chinesa, "qualquer juízo de valor, emitido com base na tradução, fará referência mais ao tradutor do que ao autor". Mesmo para o conhecedor ocidental da língua original, parece-lhe difícil encontrar cânones objetivos com os quais avaliar essas composições. Resolve, pois, limitar-se à análise textual dos poemas, num esforço de melhor penetrá-los e compreendê-los, para além da barreira idiomática.
A sinóloga Michelle Loi ("La Traversée des Signes", 1975) contextualiza a opção de Mao dentro do quadro da reação de alguns poetas do modernismo chinês, como Wen Yiduo (Wen I-to) e Guo Moruo, contra a poesia em língua usual ("baihua"), que estes, num primeiro momento, haviam defendido e praticado como um gesto de libertação e renovação diante do enfeudamento beletrista. O retorno a uma "poesia mais estruturada" (M. Loi), "capaz de dançar livremente mesmo em seus grilhões" (Wen Yiduo), antagonizava, a partir de sentimentos nacionalistas, a influência ocidentalizante e supostamente alienante sobre a poesia escrita em "baihua", contagiada por modelos de origem anglo-americana, francesa e alemã, em verso livre, sobretudo.
Mas a questão comporta, ainda, uma outra perspectiva. Para um poeta ocidental, que aborda essa poesia "neoclássica", impregnada de motivações contemporâneas militantes, do poeta e estadista Mao (há uma longa tradição de poetas em posição politicamente eminente na história da China), o paradoxo não é facilmente decidível, nem precisa sê-lo. Um poeta-tradutor (é o meu caso), amador de poesia chinesa e autodidata em seu estudo (sem formação especializada no campo e sem a mínima pretensão sinológica), mas, por outro lado, assessorado por uma boa bibliografia e, sobretudo, portador de um tirocínio de formas e de artesanato poético de quase meio século de ofício no português do Brasil, não tem, como primeiro intento, julgar esteticamente, em termos conclusivos, essa produção em língua chinesa, nem pode entreter essa pretensão.
Anima-o, sim, o propósito de recriar esses poemas do modo mais efetivo possível, convocando para isso os recursos da poesia moderna. No caso da poesia "clássica" da tradição chinesa, o próprio termo "clássico" pode ser despistador para a recepção ocidental, pois, face à natureza ideogramática da língua original, mesmo poemas multisseculares parecem irradiar modernidade. Não à toa Pound renovou a poesia de língua inglesa com as traduções de "Cathay" e com o método ideogrâmico de compor, haurido em Fenollosa. O "imagismo" de sua primeira fase, aliás, foi reexportado à China, em 1917, por Hu Shi (1891-1962), ex-estudante da Universidade de Columbia, admirador dos "A Few Don'ts" de Ezra Pound e pioneiro do modernismo chinês. Eugene Eoyang, sinólogo e professor de literatura nos EUA, estudioso dos problemas de tradução poética ("The Transparent Eye", 1992), chegou a escrever (revista "Alphabet", 1971, Ontário, Canadá): "O chinês é, de todas as línguas modernas, a mais 'concreta'. O que o 'poeta concreto' contemporâneo empenha-se em realizar é precisamente o que muitos poetas chineses tradicionais efetuaram naturalmente por séculos" ("Concrete Poetry and the Concretism of Chinese").
A prática do verso por um poeta-calígrafo contemporâneo chinês, que manipula com reconhecida mestria os recursos da poesia clássica de sua língua, oferece um outro aspecto de interesse para este tradutor. Sugere uma comparação, em certa medida pertinente, com aquelas composições singularíssimas de poetas brasileiros que reiventaram um português medieval para a transposição de poemas alheios (Guilherme de Almeida, com a sua extraordinária "Balada das Damas dos Tempos Idos", versão do célebre original de François Villon) ou para a lavra de poemas de autoria própria (Manuel Bandeira, com o seu "Cantar de Amor", à maneira do rei-trovador d. Diniz, séc. 13, que, por seu turno, se inspirava nos provençais).
Tudo isso não será, afinal, uma fantasia especulativa, uma "fata morgana", o efeito de "miragem" da operação tradutória? Talvez. Mas os resultados da operação, como tais, não são ilusórios. Estão aí. Para serem avaliados qualitativamente pela outra ponta do percurso translativo: pelo termo de chegada, como realizações poéticas em língua portuguesa. O êxito dessas transposições será o melhor serviço que a tradução poderá prestar, numa língua ocidental, ao original em idioma chinês do qual procede.
Quanto à coexistência, numa única e mesma pessoa, do poeta letrado, que compôs seus poemas dentro da grande tradição clássica chinesa, com o ativista político Mao, que passou de líder guerrilheiro nimbado da aura de heroicidade a dirigente todo-poderoso de seu país, dogmático e implacável para com seus adversários, especialmente em relação aos intelectuais que dele divergiam, eis outro paradoxo sobre o qual refletir. À luz, agora, dos subsídios de historiadores e biógrafos que se vêm ocupando, empenhadamente, em decifrar-lhe postumamente a complexa personalidade, já com o benefício do distanciamento crítico. Mas isto daria matéria para uma outra abordagem, escapando do marco circunscrito do presente estudo.

Nota: Para a leitura dos ideogramas, vali-me dos seguintes dicionários: Mathew's, "Chinese-English Dictionary", Harvard, 1963; Wieger, "Chinese Characters", Dover, 1965; Henshall, "A Guide to Remembering Japanese Characters", Tóquio, 1990; Vaccari, "Pictorial Chinese-Japanese Characters", Tóquio, 1954.

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