São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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À sombra de Shakespeare

Uma parábola das limitações do gênero policial

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

O nome dela era Elizabeth Mackintosh, mas seus romances policiais de maior sucesso foram escritos com o pseudônimo Josephine Tey. Ela tinha um sentido extraordinário da história -seja da sua terra natal, a Escócia, ou da Inglaterra, no período tumultuado da Guerra das Rosas (1455-1485). Os policiais de Tey devem acabar se revelando tão efêmeros quanto os de seus contemporâneos: Nicholas Blake (na verdade, o poeta C. Day Lewis), Michael Innes (o professor J.I.M. Stewart) e Margaret Millar, a melhor do grupo. Mas há uma exceção: "A Filha do Tempo" (1951), uma reabilitação do rei Ricardo 3º, o primeiro grande herói-vilão shakespeareano.
"A verdade é filha do tempo", provérbio irônico que serve de epígrafe ao livro, tem pouca chance de se comprovar no caso de Ricardo 3º, em que a verdade será sempre menos interessante do que o fascínio desse monstro aterrador. "A Filha do Tempo" evidentemente vai sobreviver como uma versão corrigida, mas, afinal, sem efeito, da peça histórica de Shakespeare, em que se aceita o mito da maldade de Ricardo, contrastada à suposta bondade de Henrique 7º, o avô de Elisabete 1ª -em cujo reino Shakespeare escreveu sua versão dramática da Guerra das Rosas.
No curso inteiro do livro, o inspetor Grant, herói dos romances policiais de Tey, está imobilizado, com a perna quebrada, num hospital. Fica obcecado por um retrato de Ricardo 3º, feito por um artista desconhecido, mas contemporâneo do rei corcunda que supostamente mandou matar os dois sobrinhos na Torre de Londres. Para o muito vivido inspetor Grant, os olhos assombrados no retrato não parecem indicar a presença de um vilão. Pelo contrário, o que ele vê é "um homem autoconsciente até em excesso", que influenciou profundamente a história da Inglaterra, mesmo só tendo reinado por dois anos.
O mistério que o detetive hospitalizado da Scotland Yard põe-se a resolver só pode ser solucionado por via dessa primeira intuição, que dá início à sua busca pelo Ricardo 3º autêntico. É a intuição que uma sensibilidade superior tem de outra, desafiando o tempo e suas falsificações. Livre no espírito, então, embora confinado no espaço, Grant faz uso de intermediários para conseguir as informações necessárias, até que o assistente perfeito aparece na figura de um jovem americano. Com a ajuda desse historiador amador, Grant, passo a passo, chega à síntese convincente, que absolve o caluniado Ricardo 3º e esclarece o mistério dos dois jovens príncipes, trucidados por ordem de Henrique 7º, que usurpou o trono.
Relendo "A Filha do Tempo" depois de muitos anos, fico refletindo sobre a maneira definitiva como Grant soluciona esse velho mistério (como o fazem também alguns historiadores modernos) e sobre como isso não faz diferença alguma, frente à força poética de Shakespeare. Nós jamais saberemos se Shakespeare teve a audácia de duvidar da historiografia real. Mas suspeito que o criador da peça "Ricardo 3º" estava mais preocupado em superar o Barrabás de Christopher Marlowe, no "Judeu de Malta", do que em fazer justiça histórica ao rei Ricardo. O Ricardo 3º dos historiadores, como o de Josephine Tey, não passa de uma sombra, comparado à grandiosa caricatura de Shakespeare, mais Marlowe do que Marlowe.
Não seria justo, nem útil, comparar a força de representação de Josephine Tey com a de William Shakespeare: num campeonato desses, nem Marcel Proust teria chance de vitória. Mas o fato de que o melhor livro de Tey seja derrotado pela lembrança viva de um vilão shakespeareano me parece uma parábola das limitações do romance policial moderno, como um gênero. Seus detetives buscam uma verdade que os autores jamais têm gênio bastante para dramatizar. Se pouco nos importa, afinal, quem matou Roger Ackroyd, e pouco nos importa se Ricardo 3º assassinou ou não os sobrinhos, isto é porque algo em nós está perpetuamente sedento de caracterizações mais fortes do que podem nos dar a subliteratura, ou os estudos históricos. O Ricardo 3º de Shakespeare é um mito: mas vai sobreviver a ambos.

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