São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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A sedução vermelha

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

A República Popular da China, que amanhã recebe de volta Hong Kong, pouco tem a ver com a de seu fundador, Mao Tse-tung (1893-1976). O regime chinês mudou, e o maoísmo, hoje, parece ter-se tornado mera referência histórica de conteúdo bastante ambíguo.
Mao, no entanto, foi uma das figuras políticas de maior influência sobre o século. E o maoísmo foi mais que um episódio da história oriental e ocidental: a partir dele manifestou-se todo um poderoso sintoma desta época.
Retornar a Mao, agora, é como realizar uma espécie de desrecalque da história, a elucidação de aspectos ainda suficientemente "secretos" do "grande timoneiro" e de sua longa era de dominação e influência. Foi o que fez o jornalista britânico Jasper Becker em "Fantasmas Famintos", livro recém-lançado nos EUA que examina um dos momentos mais cruéis da história chinesa (leia crítica à pág. 5-5).
É o que fazem também nesta edição do Mais! o historiador brasileiro Nicolau Sevcenko, que analisa o período da Revolução Cultural (1966-1976) na China, e o poeta Haroldo de Campos, que apresenta um lado pouquíssimo conhecido de Mao: o de poeta ligado à tradição literária chinesa.
A doutrina maoísta
O ex-dirigente chinês não foi um filósofo. Não criou um corpo coerente de doutrina. O chamado "pensamento do presidente Mao" -expressão bastante popular nos anos 60- consistiu na justificação simplificada de decisões políticas que fascinaram intelectuais e uma parcela da esquerda do Ocidente.
O maoísmo já nasceu de uma trombada com um dos fundamentos do marxismo: o de que a revolução surgiria nas cidades, como resultado do confronto entre o capital e o trabalho (o proletariado) em países industrializados.
A China não passava, nos anos 30 e 40, de um país agrário. Mao montou sua revolução no campo. Em 1949, ao tomar o poder, comprovava ser possível "cercar as cidades", em lugar de fazer delas o foco de irradiação revolucionária.
Na época, Moscou não demonstrou desprezo e nem ficou emburrado. A expansão do comunismo na Ásia, segundo Stálin, criava um anteparo para a URSS com um valor estratégico equivalente ao do bloco socialista na Europa Oriental. Era um muro protetor.
Mas Pequim e Moscou começaram a entrar em atrito a partir de 1956, quando, no 20º Congresso do Partido Comunista da URSS, Khruschov, ao denunciar os "crimes de Stálin", acenou para o princípio de distensão ou democracia interna que os chineses não pretendiam adotar.
A ruptura sino-soviética se consumou em 1960. Mao lançou sobre Khruschov uma lista de anátemas, entre eles o de fortalecer a burocracia e dar a ela o mesmo papel que a burguesia exercia, no passado, como classe dominante.
Era preciso, argumentavam os maoístas, manter o princípio da "revolução permanente", como forma de impedir o ressurgimento de uma classe com privilégios e poder de domínio sobre a outra. Em 8 de agosto de 1966, o Comitê Central do PC Chinês adota uma resolução que lança a chamada Revolução Cultural.
A palavra de ordem predominante continha um certo fascínio. Que as bases do partido depusessem os dirigentes, que os soldados derrubassem os generais, que os alunos fizessem o mesmo com os professores, que os operários reeducassem os contramestres.
As fronteiras chinesas permaneceram fechadas a qualquer auditoria sobre o respeito aos direitos humanos, um tema, na prática, inexistente na agenda das esquerdas quando se tratava de abusos no bloco socialista.
Vejamos um pouco mais do contexto da Guerra Fria naquela segunda metade dos anos 60. Na América Latina e na África, as ditaduras eram regras, e as democracias, exceção. Os Estados Unidos fabricavam ou apoiavam regimes militares capazes de conter o "avanço do comunismo". Quanto à guerra "quente", o Vietnã demonstrava a viabilidade de combatentes menos armados porem em xeque a maior máquina bélica então existente.
Foi quando surgiu uma espécie de surto internacional de guerrilhas maoístas, dispostas a aplicar, em seus países, o princípio de que vanguardas camponesas constituiriam um exército que cercaria as cidades e tomaria o poder.
Eram maoístas os guerrilheiros do Zaire e de Uganda, do Peru e, no Brasil, do PC do B, que tentou implantar no Araguaia um foco insurrecional. Grupos de terrorismo urbano, como o de Andrea Baader, na Alemanha, ou as Brigadas Vermelhas, na Itália, reivindicavam o maoísmo como paternidade ideológica. A ética da revolução poderia atropelar outras éticas. A lógica se tornava fria.
O maoísmo não chegou a monopolizar os modelos de insurreição marxista, sobretudo na América Latina, onde o exemplo e o apoio logístico de Cuba abasteciam outras ramificações da guerrilha.
A verdade, no entanto, era que o maoísmo, mesmo junto às esquerdas que não tinham por ele maior identificação, tornou-se um objeto de interesse sedutor, sobretudo entre os intelectuais.
Parecia extremamente "criativa" (termo na moda) a exortação a uma permanente subversão nas hierarquias. Era como se, da Ásia, chegasse à Europa a legitimação de uma arrogância para desqualificar os "maŒtres-à-penser" e seus discípulos institucionalmente consagrados.
Não existiu, mesmo assim, uma "estética maoísta". O romance, a poesia, a música, a pintura ou o cinema não criaram modelos de estrutura supostamente derivadas de receitas revolucionárias que tivessem uma origem chinesa.
Prevalecia, no entanto, uma postura contestatória que o maoísmo ajudou a enriquecer. Na França, foram maoístas o cineasta Jean-Luc Godard, o documentarista Joris Ivens, o diretor da Cinemateca Francesa, Henri Langlois, e o grupo de literatos reunidos em torno de Philippe Sollers na revista "Tel Quel".
Muito se falou indevidamente, na época, sobre o conteúdo maoísta do movimento estudantil que, a partir de Maio de 68, na França, tomou conta de centros urbanos tão díspares quanto San Francisco, Milão, São Paulo ou Frankfurt.
A agitação estudantil francesa nunca foi, a rigor, maoísta. Reivindicava o "pensamento de Mao" apenas um dos grupúsculos agregados ao Movimento 22 de Março, que iniciou a revolta na Universidade de Nanterre (França).
Mas prevaleciam, apesar disso, posturas "anarco-maoisantes", no hedonismo bem-humorado das pichações em Paris ("Quem não sorri é nosso inimigo; a Revolução é uma coisa feliz"). Outra dimensão desse paramaoísmo nas democracias européias consistia em se abastecer de maoísmo para atacar a esclerose das máquinas partidária e sindical construídas pelos partidos comunistas de afinidades soviéticas.
O PC italiano foi o mais inteligente. Não partiu para o contra-ataque. Tornou-se até permeável às críticas dos dissidentes que fundaram o jornal "Il Manifesto", muitos deles maoístas. Ao menos entre os italianos, deixou de existir uma dimensão fratricida na disputa interna das esquerdas.
A utopia da revolução mundial nunca reuniu seus agentes num bloco monolítico. A dissidência em cascata está inscrita na história do movimento socialista.
Mas o maoísmo não foi uma cisão como as outras. Ele apaixonava, interpelava, seduzia, num contexto de mais absoluta desinformação sobre episódios como o extermínio em massa ocorrido durante a Revolução Cultural.
Mao Tse-tung morreu há 21 anos. Dele, hoje, sobrou muito pouco. Mesmo o poder ideológico de sua imagem não possui mais grande força de sedução.

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