São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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Após reviravolta ideológica, cunhado do último imperador celebra devolução

JAIME SPITZCOVSKY
DE PEQUIM

A recuperação de Hong Kong representa um momento de felicidade comparável apenas a 1949, quando os comunistas chegaram ao poder em Pequim. A comparação não sai de um panfleto do governo chinês, mas da boca de Guobuluo Runqi, cunhado do último imperador da China, Pu Yi.
"Esperava havia muito tempo a volta de Hong Kong", afirmou, em entrevista à Folha, Guobuluo Runqi (pronuncia-se "runtchi"), 85, um dos últimos representantes da família imperial chinesa, que foi afastada do poder pelo movimento republicano em 1911.
O governo comunista descreve a China imperial como uma "era de feudalismo e vergonha, marcada pela humilhação das derrotas para o colonialismo". Foi a dinastia Qing, do imperador Pu Yi, que cedeu Hong Kong ao Reino Unido no século passado.
Hoje, o médico Guobuluo vive em Pequim, sem os privilégios da infância, continua a exercer a medicina para engordar a aposentadoria dada pelo governo e, sinal da reviravolta ideológica, não economiza elogios ao regime comunista.
Memórias de Hong Kong
Hong Kong também traz lembranças amargas para Guobuluo. O território passou ao domínio britânico como resultado da derrota da China na Guerra do Ópio, quando Londres forçava a abertura do mercado chinês para vender a droga que trazia da Índia.
Wan Rong, a irmã de Guobuluo e primeira mulher de Pu Yi, se viciou em ópio e morreu num asilo para viciados em 1946. Três anos depois, os revolucionários liderados por Mao Tse-tung chegavam ao poder.
Os comunistas chineses, ao contrário de seus camaradas russos, não executaram os integrantes da família imperial depois de impor o novo regime. "Mao Tse-tung queria nos reeducar, pois achava que quem mata pessoas não mata corações, não mata as idéias", diz o cunhado do último imperador.
A reeducação comunista funcionou? "Sim", responde Guobuluo. "Mudei minha opinião. Veja que hoje a China é um país forte, e não temos mais de enfrentar a invasão de países europeus".
Vigiado por uma foto de Chou Enlai, um dos líderes da revolução de 1949, Guobuluo declara: "Apenas os comunistas conseguiram acabar com essa situação de submissão".
O representante da dinastia Qing, a última a governar a China imperial, vive sozinho num apartamento de 36 m2, no segundo andar de um prédio da rua Jintai. O elevador precisa de pintura, e várias janelas do corredor estão com os vidros quebrados.
Guobuluo, viúvo há três anos, decorou o apartamento com imagens de Buda, pinturas, fotos de seu casamento e de um encontro do dirigente comunista Chou Enlai com Pu Yi, nos anos 60.
Cidade Proibida A irmã de Guobuluo, Wan Rong, se casou com Pu Yi em 1922. Naquela época, o jovem casal (os dois nasceram em 1906) vivia na Cidade Proibida, o imponente complexo de prédios no centro de Pequim e que era a residência imperial.
As autoridades republicanas, depois de sua vitória em 1911, decidiram permitir que Pu Yi continuasse na Cidade Proibida, com direito a eunucos e outros privilégios oferecidos a monarcas estrangeiros que visitassem Pequim.
Guobuluo, seis anos mais novo do que o último imperador, passou a infância brincando com Pu Yi nos pátios da Cidade Proibida. "Gostávamos de andar de bicicleta e jogar dominó. Mas Pu Yi queria sempre ganhar."
Silêncio
Em 1924, Pu Yi, o último imperador da dinastia Qing, abandonou a Cidade Proibida e, para fugir do rígido controle imposto pelos líderes republicanos, se refugiou na embaixada japonesa em Pequim. No começo da década de 30, o Japão ocupou a Manchuria (nordeste) e, em 1934, Pu Yi tornou-se imperador fantoche de Manchukuo, o protetorado de Tóquio na região.
Guobuluo evita falar sobre essa época, descrita pelos historiadores comunistas como "símbolo de vergonha e traição".
E, talvez com receio de irritar os mandarins comunistas, também rejeita a idéia de ter sofrido muito durante a Revolução Cultural. Entre 1966 e 1976, Mao Tse-tung promoveu essa campanha para impor o "comunismo radical", que significou a perseguição a intelectuais e pessoas com "passado contra-revolucionário".
O cunhado do último imperador diz que, embora "não tenha sofrido muito", não escapou da fúria dos "guardas vermelhos" e que foi forçado a trabalhar no campo.
Pu Yi, que nunca governou de fato, pois ascendeu ao trono com dois anos de idade e teve de abdicar menos de seis anos depois, também enfrentou a "reeducação comunista". Teve aulas até para aprender a amarrar os sapatos.
O último imperador morreu de câncer no pulmão em 1967, quando era jardineiro no Jardim Botânico de Pequim.
Críticas a Bertolucci
Guobuluo não gosta do filme "O Último Imperador", superprodução do cineasta italiano Bernardo Bertolucci que ganhou nove Oscars. "A produção cometeu muitos erros, há cenas e detalhes que não correspondem à realidade", dispara o cunhado de Pu Yi.
Guobuluo não aparece no filme. "Não me importo com o fato de ter sido excluído do roteiro", diz ele. "Mas me incomodam erros, como as roupas, muitas delas sem qualquer ligação com os trajes que usávamos na época".
Ele conta que, no início das filmagens trabalhou como consultor da produção. "Mas Bertolucci, depois de um certo tempo, não me escutava, e eu acabei desistindo." (JAIME SPITZCOVSKY)

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