São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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O Ocidente e os 'valores asiáticos'

GILSON SCHWARTZ
ENVIADO ESPECIAL A HONG KONG

Há entre o chip e o I Ching mais coisas do que imagina nossa vã filosofia? A julgar pela história da filosofia ocidental, a oposição é total. Segundo a nova filosofia política dos "valores asiáticos", modismo entre empresários e tecnocratas orientais, o contraponto é não só inevitável como já tem vencedores. Eles mesmos, claro.
É fácil colocar numa lista os traços culturais que ilustram o antagonismo entre Ocidente e Oriente. Racionalidade, progresso, democracia, individualismo, racionalismo, choque entre interesses contraditórios, mecanicismo, primazia do mercado e anticomunismo sempre foram vistos como essenciais nas sociedades ocidentais e nas suas ideologias.
Religiosidade, despotismo, sistemas políticos patrimonialistas, subserviência, intolerância, antiliberalismo, espiritualismo, espírito comunitário, compaixão, organicismo, valores familiares e primazia do Estado são aspectos sublinhados em quase 100% das visões do Oriente.
O contraponto, aliás, não é recente. Já no século 19, Marx e Weber construíram modelos de capitalismo em contraste com o "modo de produção asiático".
Entretanto, é fácil cair em armadilhas nesse território em que cultura, economia e filosofia política se misturam. Nos anos 60 e 70, por exemplo, a onda orientalista serviu no Ocidente como antídoto à sociedade de consumo, à industrialização alienante e à massificação mecanizada.
Nos anos 80, veio outra onda orientalista, mas para demonstrar que o "modelo" japonês e outras tendências orientais seriam o elixir milagroso capaz de aumentar a produtividade, fomentar a inovação tecnológica e salvar o sistema industrial da decadência.
Lógica de sistemas
Até onde vai o charlatanismo e a legitimação de sistemas opressivos, onde começam as diferenças culturais legítimas, ainda que não absolutas? Eis a questão.
Afinal, lá como cá, as ideologias fazem parte do jogo econômico. Quantas vezes, na América Latina (e mais ao norte também) já não se justificaram as ditaduras mais sangrentas em nome do liberalismo econômico e da racionalidade mercantil?
Aliás, lideranças asiáticas dizem que o seu sucesso nada mais é que a repetição da fórmula que funcionou do mesmo jeito no Ocidente, antes da sua "decadência".
E, no Ocidente, filósofos do "status quo" como Francis Fukuyama, que há alguns anos falava no "fim da História", agora louvam as virtudes das relações comunitárias. A confiança e os "valores familiares" poderiam valer mais que a racionalidade do cálculo para o sucesso dos indivíduos, das empresas e da economia.
Mas no Ocidente a lógica formal clássica supõe o princípio da não-contradição. Ou seja, algo é verdadeiro ou falso. Cada bit do computador é 0 ou 1. É impossível afirmar ao mesmo tempo "A" e "não-A".
Já uma imagem asiática consagrada como o círculo que contém dois peixinhos simétricos mostra que cada um dos pólos contém o seu contrário. E o próprio I Ching, construído a partir de uma lógica binária, desdobra-se num sistema simbólico com ampla margem interpretativa.
Convergência
O desafio é evitar os esquemas simplistas. Afinal, tradições filosóficas genuinamente ocidentais incluem também a dialética e a hermenêutica. Mesmo a lógica formal e os sistemas de computação buscam nos últimos anos um paradigma mais tolerante com as contradições, o caos, a incerteza e a interferência subjetiva.
Apesar das raízes antigas dos contrastes culturais e históricos entre Oriente e Ocidente, há quem aposte na convergência.
Entre o chip e o I Ching, portanto, há mais semelhanças do que sugerem os mais badalados gurus da administração.

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