São Paulo, quarta-feira, 2 de julho de 1997 |
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Para meu desconcerto, o Plano Real teve sucesso
MARCELO COELHO
Só para dar um exemplo. Estou organizando uma coletânea dos meus artigos na Ilustrada, que deve sair pela editora Revan no segundo semestre. Relendo o que eu escrevia por volta de 93-94, fiquei um pouco espantado com o tom negativo de minhas referências ao país. O Brasil, naqueles artigos, era sinônimo de desgraça, de azar, de absurdo, de vergonha. Claro que não é, hoje em dia, o país dos sonhos de ninguém. Mas sem dúvida o clima mudou. Tornou-se possível pensar num futuro mais organizado; a própria idéia de futuro se torna mais nítida e não se associa imediatamente a imagens de caos e de guerra civil. Talvez tudo isto seja uma ilusão de ótica, e o governo Fernando Henrique não passe, aos olhos das próximas gerações, de uma espécie de governo Dutra: uma bolha de importações durante a qual nada aconteceu. Sem me arriscar a previsão nenhuma, noto o seguinte: o conteúdo das previsões mudou. Durante mais de 20 anos, estivemos sob influência de uma idéia de ruptura. Inicialmente, era a ruptura com o regime militar. Haveria uma "queda" dos donos do poder, um instante súbito, popular e triunfal de democratização. Isso não ocorreu. Depois, com a inflação, o imaginário político se dividiu. A idéia de "ruptura", de "revolução", foi atendida formalmente com os choques econômicos. Mas, como os choques não davam certo, surgiu outro fantasma, outro emblema da ruptura absoluta: a hiperinflação. Era tão temida quanto desejada. Decretou-se, algumas vezes, seu advento. A expectativa era tanta que se transformou em secreto desejo. Talvez só depois da "hiper" fosse possível estabilizar a moeda. Havia também, nos tempos inflacionários, uma espécie de histeria sádica em curso. Queremos recessão! Queremos os horrores de 29, porque serão salutares! Acabe-se o mundo, para que acabe a inflação! O Plano Collor correspondeu a essa demência, e na ruína geral do confisco havia uma certa felicidade ascética. Pois bem, o Plano Real não trouxe horrores indizíveis. O desemprego é um gravíssimo problema, mas a miséria também diminuiu. O povão consome mais do que antes. Todos nós estamos consumindo mais do que antes, e por isso mesmo reclamamos que o dinheiro anda curto. Vivemos num clima de revolta e maravilhamento simultâneos. Tudo se torna verídico e irreal. A mudança econômica foi enorme, e ao mesmo tempo nada mudou. Nada acontece no governo Fernando Henrique. Incrivelmente, sua base de sustentação é a mesma do governo Sarney. O PFL venceu. A estabilidade da moeda garante a reeleição de FHC: há algo de simbólico nisso, como se o presidente fosse uma cédula que mantivesse seu valor. Estávamos, na época da inflação, como que num filme de cinema mudo: tudo corria cegamente, em cortes abruptos, imagens fantasmais, foco tremulante. A estabilidade da moeda foi uma estranha passagem para a filmagem em câmera lenta: tudo se tornou mais denso, mais pastoso, mais feliz, mais alienado. Tragédias, massacres, injustiças se repetem. Antes, pareciam entrar no caldo da crise; tinham valor semântico, inscrevendo-se no clima de apocalipse. Hoje, crianças podem ser mortas, José Rainha pode ser condenado, a ponte dos Remédios pode rachar, Ronivon pode vender seu voto, nada compõe um quadro de caos: tudo se isola, cada fato é meramente um fato a mais. Daí se entende a felicidade de Fernando Henrique. Desarmando a inflação, conseguiu o que nenhuma derrota legislativa sua pode obscurecer. Seus contratempos são apenas isto: contratempos. Haveria uma obra política a ser realizada. O desmonte das oligarquias regionais, a fundação de uma cidadania nova, independente dos velhos esquemas de poder. Mas nesse ponto FHC é um economicista: aposta na modernização material como instrumento civilizatório. O tempo da modernização, contudo, é lentíssimo, e exige concessões. Afastando a catástrofe, FHC afastou a idéia de renovação. Optou por um caminho seguro, em câmera lenta. Um caminho desmobilizador; nesse aspecto, está à direita de Sarney. É menos demagogo e mais eficiente. Não há o que fazer, proclama, sorridente. Já fez muito, é verdade. Eu queria mais; talvez porque os jornalistas gostem de crises e rupturas. Por isso mesmo, os melhores nesse ofício se opõem a FHC; mas ele não governa para jornalistas de esquerda, governa para uma mistura estranha de consumidores de frango e caciques do PFL, de primeiros-ministros europeus e oficiais-de-gabinete, ou, como diz a canção folclórica, governa para "Oropa, França e Bahia". É um sucesso. Quem reclama está contra o Real. Texto Anterior: CLIPE Próximo Texto: Bienal Internacional deste ano integra construção e cidadania Índice |
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