São Paulo, quarta-feira, 2 de julho de 1997
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O dia seguinte

AUGUSTO MARZAGÃO

"Este é um dia de alegria, não de tristeza. Hong Kong terá um belo futuro, se continuar livre." Chris Patten, último governador britânico de Hong Kong Por mais que a devolução de Hong Kong à China se fizesse preceder de negociações e acordos destinados a reduzir os choques da transição; por mais que entre a "pérola do capitalismo" e a única potência comunista no mundo já existisse uma teia de relações e interesses comerciais e financeiros que praticamente antecipou o espetacular acontecimento consumado no dia 1º; por mais anunciada e assimilada pela opinião pública internacional a reintegração de Hong Kong ao território chinês, depois de 156 anos de domínio britânico, o episódio assumiu proporções incomuns e deixou no ar uma considerável carga de incertezas.
Este final de século vem testemunhando mudanças extraordinárias no cenário político e ideológico global, como a queda do Muro de Berlim, a reunificação da Alemanha, a desintegração da URSS, o ingresso da Rússia no clube dos países ricos, a expansão da Otan em direção ao Leste Europeu com o aval de Moscou e outros desdobramentos do fim da Guerra Fria.
Apesar de tudo isso, o conúbio entre o capitalismo emblemático de Hong Kong e o socialismo real de Pequim ainda é capaz de produzir uma sensação de irrealidade, de algo fantástico, junto à platéia planetária.
Sem ter que disparar um só tiro, mas, pelo contrário, num clima de festas e foguetórios, a China recebeu de volta um pequeno encrave estrangeiro em suas costas.
Este traz consigo uma megaconstrução do capitalismo no seu estado mais puro, ou seja, uma usina de produção de prosperidade e dinheiro como um fim em si mesmo, um monumento aos dividendos do livre comércio, das bolsas e da especulação financeira, que também deixam sequelas de concentração de renda, exclusões econômicas e sociais, desvios perversos do contrabando e do tráfico de drogas.
A indicadores notáveis em matéria de PIB, crescimento econômico, renda "per capita", balança comercial etc. correspondem cenários de marginalização social entre os 6,3 milhões de habitantes da ilha e da península.
Não poderia ser mais estreita e substanciosa a parceria de comércio e de investimentos entre a nova China da abertura econômica e o tigre asiático que passou para a categoria de Região Administrativa Especial.
Só no ano passado, os chineses investiram US$ 17 bilhões nos negócios ilhéus, enquanto os investimentos do encrave capitalista no continente já atingem US$ 235 bilhões, recursos de uma verdadeira mina de ouro.
O fato de ser Hong Kong um porto de reexportação dos produtos chineses, fabricados com mão-de-obra barata e, portanto, de grande competitividade em muitos mercados, representa, por sua vez, um trunfo que nunca pôde ser desdenhado pelo pessoal de Pequim. Hong Kong doía nos brios de soberania da China, mas se tornou uma dor pragmática e necessária.
Daí que, nos termos da lei básica costurada por britânicos e chineses, Hong Kong só deverá submeter-se ao regime socialista daqui a 50 anos. Até lá, a regra é "um só país e dois sistemas", ditada por Deng Xiaoping.
O sistema capitalista na ilha, entretanto, terá que se adaptar aos parâmetros de um regime fechado, sem qualquer apego aos compromissos democráticos e pronto para reprimir, com o rigor conhecido, qualquer tentativa de rebeldia libertária.
O medo, em Hong Kong, provocou a migração e a fuga de milhares, ricos e pobres. Mas as pesquisas apontam 85% da população numa atitude de conformismo e até de otimismo. Não falta quem pense que nada mudará a curto e médio prazos. Preparemo-nos todos para ver como será o "dia seguinte".

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