São Paulo, sexta-feira, 4 de julho de 1997
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O negócio aplaudido

JANIO DE FREITAS

Mesmo que fosse verdadeiro o propósito de ver os governos com olhos negativos e acidez crítica, tal como dizem dos jornalistas independentes os mal informados e arrivistas até dos próprios meios de comunicação, não lhes faltaria uma boa razão para receber com reserva ou suspeita, até provas em contrário, as providências maravilhosas dos governantes e políticos em geral. Por trás delas, é raro não haver alguma dose do abominável. Ou o crime mesmo.
Eis um caso ilustrativo, transcorrido com percalços que, não fugindo muito à regra geral, não lhe retiraram o aspecto da normalidade nas privatizações. Ou seja, algumas contestações aos procedimentos e manifestações de oposição, no entanto derrotadas sem dificuldade pela tese da privatização saneadora das contas públicas e modernizadora.
Banco historicamente problemático, o Banerj não escaparia do movimento privatizante. Na primeira tentativa de privatizá-lo, já no governo de Marcello Alencar, aqui mesmo foi mostrado que a venda embutia, nas dobras do negócio aparentemente restrito ao banco, a última grande área disponível na região mais valorizada de São Paulo, a avenida Paulista. O processo de privatização parou e, ao recomeçar, limitava-se ao banco mesmo.
Há pouco, e durante semanas, o noticiário ocupou-se da novela que foi o pedido ao Senado, pelo governo fluminense, de autorização para um empréstimo de R$ 3 bilhões na Caixa Econômica Federal, indispensável à "limpeza final" do Banerj para a venda. A autorização saiu, e as fotos e vídeos mostraram a festa no Senado, com o secretário fluminense Marco Aurélio Alencar, filho de Marcello, e uns políticos de baixo estrato carregando o senador paraibano Ney Suassuna. Uma daquelas cenas amolecadas do Congresso.
Um só comprador, o Itaú, apresentou proposta no leilão, comprando o Banerj por R$ 311,1 milhões. Como o pagamento foi em títulos estaduais que, no mercado, só valem a metade do valor neles inscrito, o preço real foi de R$ 150 milhões. Contratado por Marcello Alencar para gerir o Banerj preparando a privatização, o Banco Bozano, Simonsen ficou com R$ 51,5 milhões. Logo, o que o Estado do Rio recebeu pela privatização do Banerj não chegou nem a R$ 100 milhões.
Segue-se um parágrafo do requerimento, aprovado, em que o conselheiro Sérgio Quintella pediu ao Tribunal de Contas do Estado uma "inspeção especial" para avaliar a "economicidade da venda do Banerj", exigida por lei (nota importante: Quintella é favorável à privatização dos bancos estaduais):
"Com vistas a viabilizar a transferência (do Banerj) ao setor privado, o Estado assumiu junto dívida no valor de R$ 3,088 bilhões, mais de 30 vezes o valor líquido apurado na venda, oferecendo em garantia a futura arrecadação do ICMS e do Fundo de Participação do Estado e obrigando-se a pagar de amortização e juros, por ano, aproximadamente R$ 260 milhões, ou duas vezes e meia o valor total obtido na venda".
O empréstimo feito para atender aos interessados no Banerj aumentou em um quarto a dívida do Estado, de R$ 12 bilhões para R$ 15 bilhões. Como lembrou Quintella, só em juros e amortização o Estado gastará mais do que gasta com as secretarias de Habitação e Urbanismo, Agricultura, Trabalho, Indústria, Comércio e Serviços, Energia e Trabalho. E "todo o programa de despoluição da baía de Guanabara, financiado com recursos internacionais e com o seu importante efeito na saúde da população, representa menos de um terço da dívida assumida junto à CEF para possibilitar a privatização do Banerj".
Esse processo de privatização foi, porém, incentivado pelo governo federal e aprovado pelo Banco Central. Como, se é um processo de privatização destrutiva? Não faz parte da pregação de Fernando Henrique Cardoso e das exigências do ministro Pedro Malan e do Banco Central, justificadoras inclusive da intervenção no Banerj, que os Estados não aumentem seu endividamento e o reduzam com cortes ferozes e, indispensavelmente, com a venda de estatais e bancos estaduais? Mas o método de venda do Banerj com aumento brutal da dívida foi aprovado e aplaudido. Por incompetência, por charlatanismo da pregação ou por algum interesse mais concreto?
O Senado que aprovou o endividamento em R$ 3 bilhões, para uma venda que renderia 30 vezes menos, é o mesmo que está há meses se esbaldando em espalhafatos grotescos e politicagens ordinárias, com a CPI dos Precatórios, a propósito do endividamento dos Estados e municípios. A mesma leviandade senatorial que aprovou os precatórios aprovou, na continuidade da ação parlamentar contra os cidadãos e a favor dos senadores, o endividamento para o negócio desejado pelos Alencar, pai e filho, para o futuro pagar.
É claro que o Rio de Janeiro não tem sobras de dinheiro que lhe permitam abrir mão do ICMS e do Fundo de Participação, destinando-os ao pagamento à CEF. Como não tem sobras nem para enfrentar os juros. O Estado, financeiramente, está um caco. E quem vai cobrir o rombo de R$ 3 bilhões, mais os juros, é o mesmo cidadão-contribuinte que vai sofrer os efeitos do desvio de ICMS e do Fundo de Participação, tão necessários para as urgências urgentíssimas do Estado em ruínas.

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