São Paulo, sexta-feira, 4 de julho de 1997
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NÃO FOI NADA

ANTONIO SKÁRMETA

Agora vocês me vêem assim e parece tudo bem. É que estou contando tudo misturado e aos pulos. Mas houve um tempo em que eu era a criança mais triste de Berlim. Fico com vergonha de contar o que vem agora. Não gosto de dizer que eu era uma "criança" porque meu pai nos disse que dali para a frente a infância acabara para nós.
Que as coisas iam ser muito duras, e que tínhamos que nos comportar desde já como homens. Que não ficássemos pedindo coisas ó porque não dava para comer. Que os alemães tinham uma solidariedade maior do que um bonde, mas nós precisávamos nos coçar com as nossas próprias unhas. Que a grana que os alemãs juntavam era para os companheiros que estavam no Chile. Que cada tostão que gastassem conosco aqui era mais um dia que o fascismo durava lá. Meu pai disse que esperava que nós nos comportássemos como homenzinhos e não nos metêssemos em encrenca. Que estávamos aqui como asilados políticos, e que na primeira confusão nos mandariam embora. Meu pai era especialista nesse tipo de discursos. Durante uma semana andamos na ponta dos pés. Subíamos os cinco andares até o apartamento feito fantasmas, para que as velhas não reclamassem. E durante seis meses não vimos nem sombra de carne, tirando uma ou outra salsicha extraviada.
Além do mais era inverno. Eu percorria o Tiergarten de cima abaixo procurando um pouquinho de sol. O sol em Berlim é a única coisa barata, mas muito escassa. Depois aprendi umas três palavras em alemão, e atravessava o Tiergarten, passava por baixo do S. Bahn Bellevue, saía em direção ao Zôo e depois andava a Kudamm inteirinha. Tudo isso sem um tostão, os bolsos engomados como camisa de milico. Se tivessem me segurado e sacudido para baixo, não teria caído uma só moedinha. Pensando bem, acho que eu não era a criança mais triste de Berlim, e sim da Europa, porque não recomendo a ninguém ficar triste em Berlim. E ficar triste e ainda por cima sem um "pfenning" é razão para chorar aos prantos.
Quando fazia muito frio eu me enfiava no sexto andar do KaDeWe e não passava nada mal. Tem sempre moças oferecendo coisas grátis no setor de comestíveis, e eu beliscava um pouquinho disso e daquilo. Um pedaço de queijo, depois um biscoito, depois um chocolate, uma tacinha de vinho, um camarão cozido. Se a gente dava uma volta completa, podia se considerar almoçado. De fome eu não ia morrer. Papai e mamãe agora já estão trabalhando, e dá até para um quilo de Hackepeter de vez em quando, mas naqueles primeiros meses eu era o único que não estava pálido. Um dia, lá em casa estavam reclamando da fome, do frio, da tristeza, dos fascistas, e eu perguntei aos meus pais por que não íamos até o sexto andar do KaDeWe e filávamos um almoço. Meu pai me deu então um tapa para parar de dizer besteiras, mas outro dia nós estávamos pelo centro atrás de uma documentação para o exílio, o certificado médico da Nürnbergerstrasse, e papai disse que estava roxo de fome porque havia tirado sangue para o exame, e como era mesmo aquela história do KaDeWe?, e já que estávamos por ali, fomos.
Naquele dia passei muito bem com meu pai. Ficamos quase uma hora comendo, o papai, principalmente, bebendo. Tomou três tipos de vinhos da Alsácia e saiu assobiando tangos. Disse que eu era um cara muito inteligente, mas que não me metesse em confusão. Disse para eu ter cuidado com duas coisinhas: com o roubo e a maconha. Aqui as pessoas gostam muito desses esportes. O papai me contou que qualquer uma dessas duas besteiras bastava para nos mandarem embora do país. Ele estava supercontente, mas estando contente também soltava seus discursinhos. Acho que um dia desses meu velho vai ser senador.
O que o velho nunca disse é que podiam acontecer coisas piores. E essa coisa pior me aconteceu. Eu fui o cara mais queimado de Berlim.
O caso é que eu dedicava muito tempo ao quiosque de revistas da Joachimstaler. É uma lojinha muito bonita com jornais estrangeiros, gibis e revistas de esporte. Eu ficava horas olhando os gibis, principalmente quando estávamos no famoso inverno. Lá dentro era quentinho, e não é que eu ficasse lendo as revistas, nada disso, mas me divertia muito olhando os desenhos. Lá no fundo ficavam os assuntos pornográficos, como dizem. Às vezes eu me esgueirava até lá, mas os vendedores me expulsavam.
Além do mais eu precisava parar de ficar olhando fotografias de mulheres e fazer o possível para debutar, porque já estava com pentelhos e sonhava em ter um bigode como o do meu velho ou o do sr. Kumides. Eu sonhava muito com mulheres, ficava imaginando que dizia coisas para elas e que elas riam com minhas palavras. Imaginava uns diálogos em alemão que aprendia no gibi "Junge Liebe".
Parei de ir olhar as revistas quando me tornei fanático pelo radinho portátil. Era um rádio pequenininho, japonês, que o papai trouxe para ouvir as notícias. Tinha aquela coisa para botar no ouvido, e rapidinho eu soube as melodias de todos os Schlager da semana. Passeava pela Kudamm com o fio na orelha e quando pegava uma palavra, abria o dicionário e ia repetindo a palavra até aprendê-la. Num mês, sabia as obras completas da estupidez humana.
Só agora percebo que a gente não precisa saber cantar tolices par arranjar uma amiguinha. Acho que tirei essa idéia daquelas revistas em que os cantores populares sempre aparecem ao lado de garotas bonitas. Depois aprendi que nem mesmo as palavras são necessárias. De qualquer maneira, eu era o cara que sabia mais canções em Berlim.
Ficava imaginando um concurso na televisão em que tocavam para mim os primeiros compassos de qualquer melodia e eu dizia direto o nome e ganhava marcos até dizer chega e no colégio todo mundo me admirava. Se vocês tivessem me visto com a mochila nas costas, o radinho na orelha, o dicionário e o caderno, teriam me dado a medalha de cara mais babaca da Terra.
Claro que tudo tem o seu lado bom. Eu sempre estava com tanta vontade de ouvir os Schlager, que comecei a entrar na loja de discos Elektrola Musikhaus, na Kudamm, antes de chegar à Uhland. Apontava com o dedo as capas e pedia para colocar no toca-discos. Mas tudo isso não tem a menor importância. Só estou contando porque foi assim que conheci a Sophie.
Agora que estou ficando com a Cachinhos percebo que nunca estive apaixonado pela Sophie. Ela devia ter uns cinco anos a mais do que eu, e não era precisamente a Rainha da Beleza de Charlottenburg, mas foi a primeira mulher com quem aconteceu alguma coisa. Desde o primeiro momento eu soube que com ela alguma coisa tinha de acontecer. Sophie exercia a profissão mais excitante da cidade. Atender a todos os retardados como eu que não tinham nada o que fazer e entravam na Elektrola Musikhaus para devorar quilômetros da Srta. Leandros, da Srta. Mathieu, e do notável intelectual Udo Jürgens.
Ela era mais velha do que eu, mas da mesma altura mais ou menos. Tinha um rosto pequenininho feito coelho e uns olhos imensos, que ficavam piscando o tempo todo com aquelas pestanas falsas embebidas com uma boa libra de petróleo. As pestanas de Sophie eram a falsidade absoluta, mas não o olhar. Ela era a vendedora mais convincente que eu já vi, incluindo aqueles que vendem Die Warbeit em Turm Strasse, aos sábados na saída do Hertie.
Primeiro a gente pedia, vamos supor, Ein never Morgen com o filósofo Udo Jürgens. Ela sorria e ficava com uma espécie de laguinho azul no fundo do olhar. Então dizia a frase histórica: "É o meu disco predileto." O que acontecia exatamente com todos os discos.
Eu não me importava com isso, porque nunca comprei disco nenhum. E fiz o certo, porque acho que ela começou a gostar de que todos os dias da semana eu saísse invicto daquela bancada com os fones de ouvido. Depois punha a agulha em cima da música e juntava as palmas das mãos até começar a tocar.
E quando chegava aquele momento crucial na história da sua vida, ela começava a acompanhar baixinho a letra do intérprete, olhando fixo em seus olhos como se estivesse cantando aquela canção especialmente para você. Eu pensava que estava perdidamente apaixonado pela Sophie, e enquanto ela atendia outros caras eu olhava os peitos dela e sonhava mordê-los. Ela sabia de cor as letras de todas as canções do mundo. Acho que Deus é que tinha arranjado aquele trabalho para a Sophie Braun. Ela era um perfeito Wurlitzer.
Não fui mais à lojinha de revistas, por razões que todos haverão de compreender. Agora ficava espremendo os miolos para descobrir como falar com a Sophie sobre os meus outros interesses além da música. Finalmente, durante uma aula de história, tive uma iluminação.
No dia seguinte cheguei à Elektrola Musikhaus e sentei na ponta mais distante da bancada, com o lombo curvado pelo peso da mochila. Apoiei o queixo na mesa e esperei que ela viesse me atender.
E veio com tudo em cima, seu olhar fundo e seus peitinhos, e aquele cabelo curto que lhe apertava o rosto sapeca. "O que você quer ouvir?", perguntou. Foi então que eu fiz um esforço supremo e olhei firme no fundo daquele lago, onde pulavam gaivotas, peixes e coxas batendo asas, e não disse absolutamente nada, mas não a deixei nem respirar com meus olhos fixos nos dela. Ela inclinou um pouco o pescoço e levantou as sobrancelhas. "O que você quer escutar?"
Agora ou nunca, valentes da pátria, eu disse para o meu coração. E para ela: "Não quero ouvir nenhum disco. Quero que você cante alguma coisa para mim." E não sei de onde a minha mão surgiu e pulou em cima da mão dela. Eu suspeitava que naquele mesmo instante a terra iria se abrir e me engolir para sempre e meus pais viriam fincar uma cruzinha na loja de discos. Apertei mais forte a mão dela para que não percebesse que eu estava tremendo.
Eu já havia visto coisas vermelhas na vida: as rosas, o sangue, os tomates. Bom, esqueçam disso tudo e imaginem o rosto de Sophie Braun. Foi naquele instante que eu senti que quebrara a barreira. Que Sophie seria minha namorada. Ela ficou ali em chamas como Joana d'Arc, e quanto mais vermelha, mais tranquilo eu me sentia. Eu era a estrela máxima do cinema. Então puxei suavemente a mãozinha dela e lhe dei um beijo rápido na boca. Lembram do incêndio que durou cinco dias nos bosques de Hannover? Esqueçam. Ela pôs as mãos nas minhas bochechas e empurrou o meu rosto, mas não para me afastar, e sim me fazendo um carinho. "Bobo", disse. E começou a limpar a bancada com uma flanela. Não sei para que limpava tanto, porque estava impecável.
Bom, a questão é que eu entrei numa péssima em Berlim. Nunca roubei um chiclete, jamais provei um baseado, mas me meti na maior confusão da história da Alemanha, e tudo por culpa da Sophie. Foi naquela época que conheci os Kumides, e num dia de confidências falei para eles sobre a Sophie, e disse a mesma coisa que contei a vocês, com as mesmas palavras. Eu sabia que o Homero tinha debutado, e confessei a ele que eu queria sair da segunda divisão, mas não achava o fio da meada. Creio que todos os gregos são uns tremendos filósofos, porque o Homero passou o dia inteiro pensando na tática enquanto fumávamos em cima da cama do Sr. Kumides. Vez por outra ele pensava em voz alta e me ensinou um modo de falar grego que ele chamava de "a Lógica". Deu o seguinte exemplo: "Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Logo Sócrates é mortal." Ele sempre falava assim em três frases. Entre cigarro e cigarro dizia, por exemplo: "Todas as mulheres precisam de amor. Sophie é mulher. Logo Sophie precisa de amor." E: "Todos os homens precisam de amor. Você é um homem. Você precisa de amor." E assim continuava, cada vez mais rápido, e toda vez que dizia uma coisa, perguntava: "Correto?" E eu, é claro, não descobria nenhuma falha. Se Homero se preocupar em estudar para valer, pode chegar a ser um grande filósofo.
Era um filósofo otimista. Dizia: "Todos os homens e mulheres precisam de amor. Sophie e você são homem e mulher. Logo você e Sophie precisam se amar." Grande Homero, sempre impecável. Conseguia me convencer. Eu nunca discuti uma só vírgula do que ele dizia.
Uma noite Sophie foi comigo até a casa do Urs, porque era aniversário do golpe militar no Chile e estávamos todos feitos doidos pintando faixas para uma passeata que ia haver na Savigny Platz. Eu fiquei numa turma de pintores, porque os pais estavam ocupados organizando outra manifestação e as mães faziam artesanato chileno para vender onde pudessem. Em setembro faturam por baixo uns 30 mil marcos. Eu não sou exatamente um Picasso, mas com a ajuda da Sophie fiquei pincelando os cartazes até as duas da manhã.
Era igualzinho a estar na casa do meu pai em Santiago, quando íamos às passeatas de Allende e até os lotações desfilavam. Quando resolvemos ir para casa, o U Bahn já estava fechado, até com correntes. Começamos a caminhar fumando e chupando bala, eu tinha passado o braço pela cintura de Sophie, e com esses dedinhos que Deus me deu brincava de ir subindo como quem não quer nada. A Sophie é da minha altura, e andando assim de noite na rua nós nos encaixávamos perfeitamente.
Na verdade, eu me considero alto para a minha idade, mas minha mãe diz que vou ficar baixinho porque vivo com um cigarro na boca. Devíamos estar a um quarteirão da casa de Sophie quando ganhei o bilhete premiado de que falei antes. Na porta de um daqueles Spielhalle havia um bando de garotos como eu se esmurrando e entornando latas de cerveja. O que estava menos alto parecia um abutre nas nuvens. Por aqui tem muita gente que gosta de cantar feito passarinho e então fuma uns baseados e acha que é Oh La Paloma Blanca de Nina and Mike selo Ariola. Dava para ver que eram caras da minha idade, e antes de que acontecesse o que aconteceu, eu já sabia que ia acontecer alguma coisa.
Não sou nenhum Sherlock Holmes, mas assim que eles nos viram tão agarradinhos começaram a fazer laa-laa-la-lá, quer dizer, a marcha nupcial. Muitas vezes eu também fiz gozações quando estava com alguma turma, e sei que o melhor nesses casos é passar batido. Além do mais, os carinhosos conselhos do papai também influenciam a gente, de maneira que apertei a Sophie um pouquinho mais forte e tentamos passar como se só tivéssemos ouvido um gato miando. Claro que não conseguimos, porque os quatro se aproximaram de nós e enfiaram uma lata de cerveja na minha boca enquanto me empurravam, ao mesmo tempo em que partiam com as mãos para cima da Sophie. Além disso um deles conhecia a Sophie, porque falou: "Oi, Sophie."
Eles queriam que nós tomássemos a cerveja da lata e gritavam à saúde dos noivos. Também queriam que a Sophie pusesse a lata na boca. Afinal eu disse que não, obrigado, e que nos deixassem passar porque estávamos com pressa. Aquela foi a pior idéia que me ocorreu em Berlim. Primeiro porque perceberam o meu sotaque. Depois, porque se eu estava com pressa àquela hora da noite e com a Sophie ao meu lado era porque queria ir para a cama com ela. Então chega um cara que depois vai se chamar Hans e olha para a Sophie de cima abaixo e me pergunta como ela é de cama. E então enfia a mão assim em cuia por baixo do agasalho dela.
Não sei se eu já disse que sou uma das pessoas mais nervosas de Berlim. Acho que me fabricaram com o sangue já fervido, porque foi só ouvir aquilo, ver aquilo, e zás, fiz o meu lançamento de zagueiro central. Só que em lugar de chutar uma bola grande acertei em duas pequenininhas. Lá ficou o Hans esticado no chão e eu feito doido.
"Vamos embora", disse a Sophie enquanto me puxava pelo braço, e o famoso Hans, como vai se chamar depois, ainda estava grogue no chão segurando por baixo com uma mão e por cima com a outra, e nem gritava nem nada e parecia que não conseguia respirar. Os outros três ficaram parados, como a defesa quando deixa o atacante em impedimento e fica esperando o juiz anular o gol. Eles continuavam em pé, mas não quietinhos como o tal que estava no chão.
Conclusão: naquela noite a Sophie não me deixou sair porque pensava que os caras estariam me esperando lá embaixo. Nem acendemos as luzes. Tateando, caminhamos até a janela, afastamos um pouco a cortina e olhamos para a rua. Lá estavam os quatro. O que recebeu o pontapé continuava igual, e os outros tentavam levantá-lo, mas não havia jeito.
Eu sentia a Sophie respirando muito forte ao meu lado, e percebi que eu porejava. Sentamos num sofá muito velho que rangia por todo lado e só nos dedicamos a respirar, porque a Sophie tinha medo de que a mãe acordasse. Ficamos quase uma hora olhando para a luzinha da lareira de carvão. Depois peguei a mão dela, e ficamos apertando os dedos e soltando e voltando a apertar, e assim continuamos. Depois ela começou a chorar muito lenta e prolongadamente e eu não soube o que dizer.

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