São Paulo, sexta-feira, 4 de julho de 1997
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Autor descreve filhos do exílio

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REDAÇÃO

Em setembro de 1973, o Chile perdeu seu primeiro presidente socialista, Salvador Allende, e seu maior poeta, Pablo Neruda. O primeiro foi deposto em 11 de setembro pelo general Augusto Pinochet e morreu na mesma noite com armas nas mãos. Doze dias depois, morria por problemas de saúde Neruda, que havia ganho o Prêmio Nobel de Literatura dois anos antes.
Em 1973, o escritor chileno Antonio Skármeta chegava a Berlim, onde, com o gosto do exílio na boca, começou a criar dois romances.
"O Carteiro e o Poeta", cuja versão cinematográfica foi indicada para cinco Oscars em 1996, termina com o início da ditadura chilena e com a morte do poeta chileno.
"Não Foi Nada", que a editora Record lança neste mês no Brasil, começa com os rasgos do exílio.
Com o material que Skármeta tinha em sua cozinha intelectual, "Não Foi Nada" poderia facilmente se transformar em uma empanada -prato típico chileno- recheada de fel.
Como ele mesmo diz, para um exilado o mundo se divide unicamente entre o país que ele deixou para trás e o resto do mundo. Mas o romance de lépidas 112 páginas caminhou para uma temática normalmente guardada nas sombras: os filhos dos exilados.
As canções de protesto, de grupos como Liberación Americana, as reuniões de resistência e os projetos de guerrilha vão para a reserva.
São substituídos -o escritor usa em diversas partes da narrativa metáforas futebolísticas- por músicas melosas, pelas descobertas do primeiro beijo, da primeira transa, do primeiro soco na cara, tudo em uma terra e uma língua bastante estrangeiras.
Lucho, o protagonista, é um garoto chileno de 14 anos, de cabelos compridos e trejeitos de Holden Caulfield, o personagem central de "O Apanhador no Campos de Centeio", obra de 1951 do autor norte-americano J.D. Sallinger.
Menos sofisticado do que Caulfield, mas com um modo de encarar a vida semelhante, Lucho carrega por trás de um discurso aparentemente banal de adolescente, recheado de superlativos como "Eu era a criança mais triste de Berlim", "Eu era o cara que mais sabia canções em Berlim", "Eu era o melhor pegador de Sol do mundo", uma maturidade por vezes maior que a de seus pais, seja no modo de se relacionar com amigos, de brigar com inimigos ou de encarar o amor.
Esse mesmo tipo de maturidade Skármeta, que escreve no prólogo do livro que é do "tipo de escritor que faz suas ficções antes de mais nada com as emoções da sua experiência pessoal", diz que colheu de um personagem verídico.
A figura de Lucho começou a rodear os neurônios do escritor quando ele foi apresentado a um amigo adolescente de seu filho também adolescente.
O garoto, "que gostava mais de literatura do que de música", havia escrito um texto que o filho do escritor chamara de "cafonice soft".
Skármeta pegou o papel da mão do adolescente então desanimado e leu: "Joga o cabelo para trás com a mão/Joga lentamente o cabelo para trás com a mão/Joga mais uma vez lentamente o cabelo para trás com a mão/Joga mais uma vez outra vez lentamente o cabelo para trás com a mão/Joga infinitamente mais uma vez outra vez lentamente o cabelo para trás com a mão".
"Repetitivo, rítmico e obsessivo", disse o escritor chileno. O garoto, levantando com o "arrojo juvenil que dá a impressão de que os ossos são repúblicas independentes das articulações", repetiu a frase e acrescentou uma quarta palavra às outras três: "definitivo".
Skármeta perguntou qual era o estilo do adolescente, e ele respondeu: "Al lote" -expressão "chileníssima" que significa "do modo como sair".
A ousadia e a espontaneidade "al lote" tomaram os contornos de Lucho, que foi apelidado de "Nãofoinada", pelo modo como reagia às acusações de violência em um dos primeiros bate-bolas com os alemães. Depois de entradas vigorosas, ele abria os braços, olhava para o atacante caído e dizia: "Não foi nada".
Boccaccio
Com "Não Foi Nada", Skármeta recebeu no ano passado, durante o Festival de Veneza, um dos prêmios literários considerados mais importantes da Itália, o Boccaccio, criado em homenagem ao autor de "Decamerão".
Para a edição italiana, o escritor fez alguns "ajustes" no texto. Curiosamente, Skármeta deslocou a trama da família de exilados da Alemanha para a Itália. Lucho e sua família deixaram a fria Berlim, em que o Sol é "a única coisa barata, mas muito escassa", com direção a Milão.
Nas entrevistas que deu à imprensa italiana, Skármeta disse que a mudança de lar seguia sugestões dos editores e visava facilitar a tradução.

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