São Paulo, sexta-feira, 4 de julho de 1997
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León Tolstói, o conde niilista

DO "EL PAÍS SEMANAL"

Como parte da série "150 Anos de Entrevistas", o "El País Semanal" publica uma conversa com Tolstói, realizada no dia 9 de fevereiro de 1905 pelo jornalista do "The Manchester Guardian" Harold Williams.
O conde León Nikoláievich Tolstói (1829-1910), romancista russo, pensador religioso e moralista, nasceu nas terras da sua família em Yasnaia Poliana, no vale do rio Volga, onde foi realizada esta entrevista. Estudou direito e línguas orientais, mas não conseguiu terminar sua carreira.
Começou a escrever durante sua permanência no Exército, produzindo uma trilogia autobiográfica. Atuou como oficial na Criméia e escreveu crônicas sobre o conflito antes de viajar para a Europa.
Teve 13 filhos. Viveu em Yasnaia Poliana e lá escreveu seus famosos romances "Guerra e Paz" (1863-1869) e "Ana Karenina" (1874-1876). Produziu diversos tratados religiosos e morais mas, depois de ter sido excomungado, em 1901, por suas idéias heréticas, passou a atacar o cristianismo.
Repudiou seus próprios romances, entregou todos seus bens à sua mulher e viveu humildemente, como um servo, na sua propriedade. Uma noite, depois de uma discussão com sua mulher, saiu de casa, pegou um resfriado e morreu em uma estação de trem.
O jornalista Harold Williams nasceu na Nova Zelândia e, aos 11 anos, falava latim, grego, hebraico, francês, alemão, maori e italiano. Em 1904, depois de ter trabalhado no "The Times", foi contratado pelo "The Manchester Guardian" como correspondente em São Petersburgo, passando a ser o primeiro correspondente do jornal a residir em uma capital estrangeira.
*
No meio das lutas e da agitação que atualmente perturbam a Rússia, Tolstói parece, muitas vezes, pertencer a um passado remoto e silencioso. Ele ainda está vivo e trabalha. Sabe a admiração com que todos o mencionam.
Muitas famílias estão relendo "Guerra e Paz" com renovado interesse. Tolstói permanece intocável, paira acima dos ventos que derrubam as reputações do momento, e essa mesma segurança parece tê-lo levado a uma espécie de distanciamento olímpico das esperanças e dos medos daqueles que lutam pela liberdade política.
Mas há outra coisa: a Rússia chegou a uma fase em que já não ouve mais o que Tolstói tem a dizer. Ninguém duvida do esplendor de sua arte, mas não passa pela cabeça de nenhum dirigente liberal pedir-lhe conselhos.
Nós, os estrangeiros, temos um ponto de vista diferente. Para nós, continua sendo importante saber o que Tolstói pensa.
Obviamente, nossa conversa começou pelo movimento constitucional. A opinião de Tolstói sobre ele era muito concisa.
"É perigoso", declarou. "É inútil porque afasta as atividades do homens do verdadeiro caminho. Uma Constituição não é capaz de melhorar as coisas, não pode proporcionar liberdade."
Quanto à liberdade de imprensa, foi preciso: "O que o povo tem a ganhar com a liberdade de imprensa? Essas pessoas podem ter liberdade de imprensa -se é isso o que eles desejam- para publicar suas opiniões, mas isso é uma questão sem importância".
Vale a pena ressaltar que o próprio Tolstói sofre intensamente com a censura. Até um escritor tão ilustre como ele não está livre da indignidade com o fato de trechos de livros e jornais estrangeiros chegarem rasurados às suas mãos.
Falando sobre como escolher uma profissão, ele disse que seu modo de vida era o resultado de duas forças opostas: seu próprio esforço para conseguir um ideal e a inércia do seu passado.
"Há uma frase de Kant que acho terrível, um ditado que durante muito tempo não me atrevia a aceitar e que agora reconheço como verdadeiro, no sentido de que um homem que faz o bem por força do hábito não é um homem bom. Mas isso é verdade.
"Uma vez conseguido um determinado nível de bondade, não devemos querer mantê-lo e sim lutar por alcançar um nível superior", disse.
As críticas literárias de Tolstói são sempre interessantes. Tem uma opinião muito negativa sobre a literatura russa e, na verdade, sobre a maior parte das literaturas contemporâneas.
"Antigamente", observou, "a arte era como a música de câmara e atraía pouca gente. Hoje, é do gosto das grandes classes comerciais e industriais. Nunca alcançará a plenitude, a não ser que consiga atrair o povo como um todo", definiu.
Utilizou a literatura inglesa atual para expor exemplos da suas teses:
"Vamos considerar Rider Haggard. Escreve as mais extraordinárias fábulas", disse.
Em relação a Charles Dickens, sente uma admiração sem limites e recentemente releu com grande prazer sua "Child's History of England".
Não gosta de Ibsen e criticou ferozmente "When We Dead Awake", representada recentemente em um teatro de Moscou.
Também parece sentir especial admiração por Anatole France.
"O jornalismo", garantiu, "não é um bom assunto. Um jornal é obrigado a apoiar um determinado partido, quando o melhor seria que ele fosse independente. Além disso, o jornalismo não é bom porque obriga o homem a trabalhar com pressa e faz com que deseje a exclusão dos outros. Tem suas coisas boas, sem dúvida, e uma delas é proporcionar aos homens um meio de comunicação."
Falou sobre muitas outras coisas no decorrer do dia, muito mais do que eu conseguiria reproduzir aqui, e, no meu esforço por transmitir suas palavras, acabei sendo incapaz de mostrar a mudança incessante de sua personalidade.
A conversa foi interrompida frequentemente. Parte dela teve lugar durante o almoço, outra no estúdio, outra durante o jantar e continuou durante o chá da noite. Houve muitas paradas.
O ânimo de Tolstói mudava com frequência, da seriedade à brincadeira, e passava, em um piscar de olhos, de temas gerais para questões totalmente pessoais.
Falava com simplicidade e amabilidade, sem o menor vestígio de dogmatismo e estava sempre disposto a ouvir opiniões contrárias às suas. E em nenhum momento deixou de transmitir uma impressão de profunda calma interior.

Tradução Maria Carbajal

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