São Paulo, sexta-feira, 4 de julho de 1997
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A corrupção geral

GERARDO MELLO MOURÃO

Se o velho repórter parlamentar Machado de Assis escrevesse hoje o "Dom Casmurro", em vez de dizer que a confusão era geral, como nota em seu romance, exclamaria, talvez com maior razão, que a corrupção é que é geral.
Um sujeito caído da Lua de repente no chão da política teria certamente a impressão de estar aterrissando na Cloaca Máxima da Roma antiga. A pauta dominante dos jornais, escritos e falados, é o escândalo do balcão de compra e venda instalado na vida pública. Nesse balcão já se compra até pelo facilitário, como no caso dos votos para a emenda da reeleição, com R$ 100 mil à vista e outros R$ 100 mil na entrega.
Se mal de muitos consolo é, podemos verificar, nas hemorróidas do processo histórico, que o câncer da corrupção na alma, ou em partes impronunciáveis do corpo dos políticos brasileiros, é antigo e sistemático.
Governadores e homens públicos já enriqueciam ilicitamente na Colônia, no Império e na República. Quanto mais pobres os Estados, mais ladrões os governadores, como aquele infame marquês de Aracati, que, não tendo o que roubar na indigente província do Ceará, nos tempos de Dona Maria, a Louca, passou a se apoderar, em rapinagem explícita, dos bens patrimoniais de famílias inteiras, como fez com meus antepassados da serra da Ibiapaba. Fez escola no Ceará e no Brasil.
É conhecido o rompante de dom Pedro 1º, depois da abdicação. Recolheu-se, e com ele boa parte do ministério, à fragata inglesa que o levaria a Portugal. Dois dias depois, com o navio já lotado, apareceu a bordo, para asilar-se como os outros, seu ministro da Justiça, um homem severo e honrado.
O imperador objetou-lhe que já havia gente demais a bordo. O ministro respondeu que era irremediavelmente pobre, não podia se manter aqui e iria para Portugal, onde tinha uma tença de coronel. Pedro 1º retrucou-lhe, com sua rudeza habitual: "É pobre? Por que não roubou? Roubasse. O Caldeira Brant (marquês de Barbacena) roubou muito e está riquíssimo. Roubasse como ele e estaria bem de vida".
A pequena anedota encerra uma súmula, como hoje se diz na gíria do Judiciário, da corrupção institucionalizada.
A corrupção, assídua à vida pública de todos os países, no Brasil parece ter foro privilegiado. Roube e fique bem de vida. O Lula, hoje despropositadamente alvejado por injúrias descabidas e, sem dúvida, um líder popular acima de qualquer suspeita, disse uma vez que há 300 picaretas no Congresso. Trezentos deve ser uma aritmética simbólica, com algarismos que podem ser maiores ou menores. Ninguém contou.
É certo que há pobres e ricos honrados entre os congressistas ou entre os ministros e governadores. Todos nós conhecemos alguns deles. Mas é certo também que alguns pés-rapados da vida pública, antes sem eira nem beira nem ramo de figueira, tornaram-se donos de fortunas colossais, no ramo das comunicações ou de outras indústrias mais ou menos inconfessáveis. Todo mundo no Brasil conhece seus nomes e alguns de seus negócios, mas eles empurram com a barriga cada dia maior as suspeições e as acusações da opinião popular e dos jornalistas vigilantes.
A corrupção não é privilégio do Brasil. Privilégio é a impunidade. Afinal, os corruptos sentam praça em todos os partidos do mundo. Julien Green dizia certa vez a Gide que um homem limpo não podia fazer política: corria o risco que corre um soldado nas trincheiras. Ali se pode morrer ao lado de um herói ou de pulhas e patifes da pior espécie. "Não quero morrer ao lado dessa gente" -dizia o romancista.
Encontrava-me em Paris no dia da última eleição da França, quando o sr. Le Pen, chefe da Frente Nacional, declarou, com todas as letras, que 90% dos políticos franceses deviam estar na cadeia, como ladrões. Le Pen é líder de um partido acuado num gueto da vida pública pela opinião democrática do país. Não importa: obteve mais de 15% do eleitorado.
Não se sabe se o cálculo do dirigente da direita francesa, como o dos 300 picaretas de Lula, está além ou aquém da verdade. O que se sabe é que na França, como em toda parte, pululam os políticos corruptos. Mas lá, de vez em quando, algum deles acaba dançando e é arrancado de uma cadeira para um banco de réu e uma cadeia pesada. E aqui?
Os jornalistas, os intelectuais, os artistas, os homens de inteligência neste país malham em ferro frio. Afinal, o que nos resta é atender à advertência que um dia me fez Camus: a tarefa dos homens de espírito, dos homens superiores, não é fazer a história. É sofrer a história. Ludibriados pelo presente, é a eles que pertence o futuro. Os que hoje sofrem a história caiada pelos que pensam que a constroem terão sua história escrita um dia pelos poucos que lutam contra a corrente.

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