São Paulo, sexta-feira, 4 de julho de 1997
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O Estado voltado para o cidadão

DAVID ZYLBERSZTAJN

O tema privatização, tão debatido nos últimos tempos, deveria suscitar, nas cabeças à direita e à esquerda, uma singela interrogação: para que e para quem serve o Estado?
Essa pergunta parece-me muito mais relevante que o ponto em que normalmente se centra a polêmica travada entre liberais e socialistas, sobre a natureza da propriedade da empresa -se tem de ser privatizada ou continuar estatal.
Passamos por um momento de transição. No geral, o Estado tem prestado um mau serviço. E mesmo aqueles que vinham tendo qualidade adequada correm o risco de piora.
O caso de São Paulo é ilustrativo. No acordo da dívida com o Banespa, nota-se que o governo paulista terá de comprometer 13% da receita para pagar débitos antigos.
Ou seja, se já se esperava pouco dele em investimentos nas áreas de infra-estrutura, isso agora é coisa praticamente descartada. Diante da escassez de recursos, o jeito é procurar avaliar onde se vai alocar o pouco dinheiro disponível.
No passado, São Paulo privilegiou o investimento em infra-estrutura, o que considero ter sido uma decisão acertada. Telecomunicações à parte, a malha rodoviária, a malha ferroviária, o setor energético de São Paulo -que compõem o principal sistema de infra-estrutura do país- foram viabilizados com investimentos paulistas. No entanto, esse sistema já passou de um patamar mínimo que garanta sua subsistência e reprodutibilidade.
Em outras palavras, a infra-estrutura paulista está sob risco, devido à falta de manutenção e de novos investimentos. Como rareiam recursos para o Estado realizar diretamente as melhorias necessárias, não há alternativa senão repassar ao setor privado a responsabilidade de operar e expandir o sistema.
Paradoxalmente, esse mesmo Estado que, no passado, construiu um complexo de infra-estrutura tratou com desleixo as áreas eminentemente estatais. A tal ponto que, hoje, todas as referências em qualidade em saúde, educação, transporte urbano e segurança são privadas. Estatizaram os setores produtivos e privatizaram os serviços de cunho social.
É nesse contexto que a questão ganha uma conotação mais filosófica que ideológica. Filosófica no sentido da proposição acima, de colocar o papel do Estado no centro dos debates. Será que o Estado precisa mesmo operar empresas energéticas, sistemas de telecomunicações, mineradoras, estradas?
Acredito que não. O Estado não tem razão de existir se não tiver poder para intervir eficientemente nas esferas que tocam diretamente ao cidadão.
Dada a atual escassez de recursos, saúde, educação, segurança e transporte urbano devem prevalecer no orçamento público, em detrimento do lado empresarial do governo. Não faz sentido deter um patrimônio colossal estocado numa atividade economicamente deficitária enquanto a população sofre nas filas dos hospitais, nos ônibus lotados, com a falta de vagas nas escolas -sob a alegação, por parte do governo, de falta de verbas.
Tome-se o caso da Vale como exemplo. Como acionista majoritário, o governo federal auferia, na forma de dividendos, pouco mais de 1% sobre o capital investido na empresa. Antes o dinheiro estivesse aplicado numa modesta caderneta de poupança: renderia 6% ao ano mais correção, sobrando muito mais para alocar nas áreas sociais.
Há os que rechaçam as evidências dos números valendo-se do velho argumento de que são setores estratégicos, esses na pauta da privatização.
Em nome de qual estratégia o Estado brasileiro deve operar a extração de minério de ferro? Para eventualmente pressionar a indústria japonesa do aço? Ora, se isso acontecesse, bastaria aos japoneses se voltarem para a Austrália, dona de enormes jazidas.
O que existe é uma certa confusão entre os conceitos de estratégico e de estatal. Nem tudo o que é estratégico precisa estar nas mãos do governo. Fosse assim, precisaríamos estatizar o transporte aéreo, serviço imprescindível a qualquer país. O mesmo valeria para a indústria automobilística, carro-chefe de todo o setor industrial brasileiro...
Claro, a privatização, por si, não operará milagres. É importante passo na redefinição do papel do Estado, mas é apenas uma das tarefas a executar.
Uma série de reformas tem de ser tocada com igual urgência, e especial ênfase deve ser dada ao ajuste fiscal. Sem equilíbrio nas contas, o dinheiro das privatizações desaparece, e o Estado não será capaz de investir em coisa alguma. Investimento sustentado só se concretiza com um mínimo de sanidade econômico-financeira.
Com o processo de ajuste e capitalização do Estado, vamos chegar a um Estado moderno, com força para cumprir com sua obrigação de prestar serviços de boa qualidade ao cidadão -além de reforçar seu papel de agente regulador e fiscalizador das atividades econômicas. Pois o Estado atual pode estar sendo, historicamente, conveniente para setores privados. Mas, para o cidadão, está faltando.

E-mail: dzylbersztajn@sp.gov.br

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