São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
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Morte no sinal

MARIO VITOR SANTOS

O fim deste primeiro semestre de exercício da função de ombudsman é oportunidade para tentar limpar a mesa, tratar de alguns casos trazidos pelos leitores. Todos têm algo em comum: os critérios que orientam a imprensa.
O primeiro é grave, por expor uma das maiores debilidades da imprensa, a falta de sensibilidade para casos que deveriam merecer toda a atenção do jornal e acabam desprezados.
Reproduzo mensagem eletrônica do leitor Mauricio Borges Martins de Araujo, médico e professor da Escola Paulista de Medicina, enviada há dez dias:
"Domingo último, dia 22, presenciei e prestei socorro às vítimas de um bárbaro atropelamento na avenida Nova Faria Lima, onde um senhor e seu filho único de 8 anos de idade, ao atravessar a pista, na faixa de pedestres e com o farol aberto para eles, foram colhidos por um BMW em alta velocidade. "Vi o adulto sendo jogado para o alto, a uma altura de aproximadamente 1,5 metro. A criança foi arrastada pelo carro por uns 50 metros, sendo que o condutor do veículo não se dignou pisar no freio, seguindo em frente, na mesma velocidade em que vinha. O menino teve morte praticamente instantânea, falecendo no local. O adulto foi transportado para o Hospital São Paulo, onde trabalho, pelo serviço de resgate do Corpo de Bombeiros, tendo tido a bacia esmigalhada, fratura exposta de tíbia e ruptura de vísceras abdominais. Após o ocorrido, preocupei-me em saber se se havia identificado o condutor do veículo, que era de Curitiba, tendo sido anotadas as duas primeiras letras da placa."
Prossegue a mensagem: "Na Folha de ontem (25), pág. 3-4, deparei-me com a seguinte manchete no pé da página: 'Dono de BMW que atropelou e matou garoto é identificado'. No texto, são citados os nomes das vítimas, o pequeno Douglas e seu pai, Antonio Alves da Silva, zelador, segundo a reportagem. Quanto ao atropelador, diz o texto: '...o suspeito é empresário, mora no Rio e visitava uma namorada em São Paulo. O nome não foi revelado'. Pergunto eu (o leitor) por que não foi revelado o nome? Em se tratando de empresário, condutor de BMW, já sabemos de antemão que ele jamais será punido por seus vários delitos, sendo o mais grave deles o de não haver nem sequer parado para prestar socorro às vítimas. Que país é este? Quero, pelo menos, saber o nome desse assassino inescrupuloso".
No mesmo tom indignado escreveu o repórter-fotográfico Cacalo Kfouri (de quem o colunista Juca Kfouri é irmão mais novo): "Leio, na Folha, no segundo dia de noticiário sobre o atropelamento, que a polícia não havia informado o nome do proprietário do carro: vou ao 'Estadão' e lá estão os nomes do proprietário do carro, de sua namorada, o endereço da namorada e por aí afora".
Consultei o editor de Cidades da Folha, Vaguinaldo Marinheiro, responsável pelo acompanhamento dos fatos descritos. Sem querer entrar em detalhes a respeito de como o concorrente obteve a informação sobre a identidade do motorista e a Folha não, Marinheiro fez uma avaliação geral da cobertura.
Reconheceu que o assunto deveria ter sido mais bem acompanhado, mas que foi "ofuscado por outros fatos muito importantes que se acumularam na mesma época, como o início do rodízio de automóveis em São Paulo e a rebelião dos policiais militares em Minas Gerais".
Na minha opinião, esse caso é exemplar da falta de sensibilidade que às vezes se manifesta quando a Folha tem de decidir para onde direcionar seus esforços. O jornal noticia sobre muitos assuntos todos os dias, e parte deles tem importância no mínimo questionável.
A sociedade quer justiça para os comportamentos criminosos e quer acreditar que a imprensa esteja a seu serviço, participe desse seu anseio de salvação da cidadania. Conta que o trabalho investigativo dos jornais revele os nomes dos envolvidos, destaque as circunstâncias de seu comportamento, para evitar que os crimes sigam impunes.
No caso da Folha, o mais grave não foi nem a omissão do nome do proprietário do BMW, mas o erro de subestimar o assunto, de não dar a ele o destaque que ele merecia.
Um jornal pode deixar de publicar quase tudo, menos o que é importante. E decidir o que é ou não importante num jornal não constitui questão apenas "jornalística". Está ligada aos valores que se deseja cultuar e à sensibilidade em relação aos anseios do público. Em essência, a decisão jornalística é uma decisão ética.
Em tempo: de acordo com a polícia, o proprietário do BMW se chama Fernando Antonio Cunha.
Empresa do ano
Falta de sensibilidade também levou a revista "Exame" a conceder o prêmio de empresa do ano à companhia de aviação TAM, como pode ser conferido em sua última edição.
O levantamento técnico que fundamenta o prêmio parece rigoroso, a reportagem explica o esforço para superar os prejuízos que o desastre causou à imagem da companhia, mas duas coisas me chocam.
Uma é que os frios números de desempenho que resultaram no prêmio não registrem a situação criada pela queda do jato da TAM em São Paulo, nem o choque junto à opinião pública, nem as perdas das famílias, que ainda não receberam o laudo oficial da queda do Fokker.
A outra é que essa premiação tenha sido recebida com tanta naturalidade. Tem-se a impressão de que a apatia é a marca do Brasil de hoje.
O líder
Será que o líder do governo Luís Eduardo Magalhães merecia aquela foto aberta em seis colunas, com altura de meia página naquele sábado 16 de junho, ilustrando seu discurso para o plenário vazio da Câmara dos Deputados? Não teria havido manipulação da opinião pública? Para servir a que interesses?
Quem pergunta é o leitor Romildo Gouveia Pinto. A resposta é do editor de Brasil, Fernando Canzian. Ele esclarece que o texto publicado abaixo da foto chamava a atenção dos leitores para o fato de que a oportunidade foi montada por Luís Eduardo, que ele aproveitou a ausência dos deputados para fazer o discurso e causar impacto. Na opinião de Canzian, o fato e a foto revelariam também parte do caráter e dos meios empregados na Câmara pelo político Luís Eduardo.
Nesse raciocínio, penso eu, o melhor teria sido não ceder ao teatro parlamentar, publicando apenas o que a ocasião em si valesse. Noticiar o discurso pelo seu valor político, por sua novidade, ou seja, com pouco destaque. A imprensa cria uma cultura de independência quando não cede aos fatos criados para obter promoção pessoal.

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