São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
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O parlamento alheio

MAX SCHRAPPE

Na mesma segunda-feira, 23 de junho, em que a Fiesp, com base em estudo da Fipe, mostrava que o atraso da revisão constitucional reprimia em 3,7% ao ano o crescimento do PIB, o presidente Fernando Henrique Cardoso, na sessão especial da ONU sobre a herança da Rio-92, fazia duras críticas aos países ricos, por não tomarem providências para reduzir as disparidades regionais do planeta.
Enquanto Fernando Henrique bradava, em Nova York, que "a pobreza continua a prejudicar centenas de milhões de pessoas", a Fipe demonstrava, em São Paulo, que somente a reforma da Previdência permitiria a criação de 1,8 milhão de empregos por ano, reduzindo a miséria no Brasil.
Como se estivessem alheios a tudo isso, numerosos parlamentares, responsáveis pela votação das reformas, iniciavam uma semana de recesso branco no Congresso, por conta das comemorações das festas de São João...
Indiscutivelmente, é lícito e válido que o chefe da nação brasileira assuma posições de vanguarda no cenário internacional, lamentando a pobreza de seu país e a miséria da África. É justo cobrar do mundo desenvolvido providências mais concretas para o cumprimento da Agenda 21, do Tratado da Biodiversidade e dos acordos sobre as florestas e a erradicação da miséria, temas que pontuaram, há cinco anos, a antológica Rio-92.
No entanto, os protestos presidenciais soam com certa ironia nos ouvidos cansados dos trabalhadores e empresários brasileiros, que, nos limites do território nacional, enfrentam enormes dificuldades para se reposicionar no cenário da globalização.
Para quem trabalha e produz, enfrentando os juros mais altos do mundo, um câmbio irreal, impostos e encargos sociais demasiadamente onerosos, carência de infra-estrutura e falta de crédito, fica a impressão de que o Brasil não está fazendo a sua parte para erradicar a própria miséria.
Além disso, torna-se nítida a consciência de que, substituindo as reformas por uma rígida política monetária, o país, além de ceifar empresas, empregos, produção e salários, deixa de atender às sequelas desse estado de coisas, como denunciam, dia a dia, os proventos baixíssimos dos aposentados, as filas do INSS, a precariedade do atendimento à saúde, os índices de analfabetismo e a exclusão de parcela expressiva do povo dos benefícios da economia.
Seria redundante repetir que a solução de boa parte desses problemas continua à espera da revisão constitucional, que, a exemplo da própria promulgação da Carta de 88, das Diretas Já e de tantos pacotes econômicos, entre eles o Real, é o novo nome da esperança para os brasileiros.
O que se pergunta, com justificável apreensão e indignação, é o porquê do atraso. Que mistérios políticos se interpõem entre o governo, o Congresso e os interesses maiores do povo brasileiro? O que mais é necessário para demonstrar ao Executivo e ao Legislativo que, sem as reformas, a nação vai adiando o início de um processo de desenvolvimento sustentado, único caminho para a erradicação da miséria?
Como falar em salubridade e ecologia enquanto o modelo econômico e a exclusão social cultivam favelas, conflitos fundiários, êxodo rural, desemprego urbano e a devastação ambiental das cidades, do campo e de extensas áreas além das fronteiras agrícolas?
As emendas constitucionais que tramitam no Congresso já não são exatamente o que os setores produtivos -empresários e trabalhadores- propugnavam.
No âmbito das reformas tributária, previdenciária e administrativa, a sociedade civil já cedeu à complexa rede de acordos entre Executivo, Congresso, partidos e lideranças regionais, entendendo a velha máxima de governantes e parlamentares de que "a política é a arte do possível". Portanto, causa ainda maior perplexidade o fato de a revisão constitucional "possível" continuar travada.
Nesse contexto, brota uma sensação demasiadamente amarga: por mais culpa que se possa imputar aos países ricos pela miséria hemisférica do sul do Equador, por mais eloquentes e incisivos que sejam os discursos na ONU, é indisfarçável a omissão do Brasil na solução de seus próprios problemas.
Assim, antes de cobrar responsabilidades alheias, seria muito mais lícito e produtivo reconhecer que, de fato, não estamos fazendo a nossa parte. Afinal, a reforma da Constituição brasileira não é tarefa da Assembléia Geral das Nações Unidas ou dos governos e parlamentos dos EUA, do Japão, da Alemanha, da França ou do Reino Unido...

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