São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
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A travessia com risco (mal) calculado

LUCIANO COUTINHO

Depois de meses e meses de apatia, lideranças empresariais passaram a semana do terceiro aniversário do Plano Real exigindo as reformas. Sem que se esclarecesse o conteúdo dessas, foram apresentadas à opinião pública como milagrosa panacéia, capaz de permitir, sem demora, o rápido crescimento da economia.
O governo, por seu turno, orquestrou por meio da mídia uma operação autocongratulatória de júbilo pelo natalício da nova moeda -com indisfarçável cheiro eleitoreiro- e o presidente, sem a menor cerimônia, repassou ao Congresso o ônus pelo atraso das reformas.
Dessas, propriamente, falou-se pouco. A tributária, empacada há muito tempo por responsabilidade do Executivo, dada a dificuldade de concertar os interesses dos Estados, municípios e União, seria a mais importante a curto prazo -pelo menos no que toca à modernização e à racionalização da incidência tributária.
Reconhecida a dificuldade, o governo poderia, pelo menos, ter tomado a iniciativa de propor a unificação das contribuições sociais (PIS-Pasep, Cofins) que incidem em cascata sobre o faturamento das empresas e oneram a competitividade de muitos setores.
A reforma administrativa não teria impacto relevante a curto prazo, mas, segundo cálculos de especialistas, poderia representar uma poupança fiscal da ordem de 0,5% do PIB ao ano. A reforma previdenciária só teria efeitos sobre o fluxo de caixa do INSS a longo prazo. Do ponto de vista da concepção essa reforma tem significados absolutamente diferentes, dependendo do proponente: desde os corporativistas que não querem mudar nada até os liberais-conservadores que propõem a privatização da Previdência à chilena (alternativa, aliás, inteiramente inviável do ponto de vista fiscal).
Embora relevantes e indispensáveis do ponto de vista da redução do déficit público e da recuperação da capacidade de poupança e investimento do Estado, as reformas -ainda que pudessem ser implementadas já- não resolveriam o principal óbice ao crescimento dado pelo grave e crescente déficit externo.
Com efeito, o déficit público, em termos reais, vem se reduzindo desde 1995, quando chegou a mais de 5% do PIB. Hoje se situa em torno de 3,5% e tende a cair para cerca de 3% do PIB ao longo do ano. Já o déficit externo, em trajetória contrária, vem crescendo sem parar, tendo saltado de 2,5% do PIB em 1995 para 4,0% hoje e caminha para perto de 5% do PIB no fim deste ano (i.e., cerca de US$ 36,5 bilhões em termos absolutos).
O problema essencial reside na valorização artificial do real que induz a um irrefreável déficit no comércio exterior e na conta-turismo, além da acumulação dos juros e remunerações devidos ao capital estrangeiro necessário para pagar essa conta. Se avaliada pelos critérios da teoria econômica convencional, a taxa de câmbio brasileira está em estado de "desequilíbrio fundamental".
Por isso, a nossa trajetória mais se assemelha à mexicana na primeira metade dos anos 90: déficit interno em queda, déficit externo em expansão, crescimento modesto -com pouco investimento e muito consumo. Também como no México, o governo se fia no programa de privatizações para atrair capitais externos na escala suficiente para fechar esse desequilíbrio. Além disso, os seus formuladores argumentam que, dentro de dois anos, as exportações começarão a crescer extraordinariamente e as importações tenderão a se estabilizar, revertendo-se a piora do déficit comercial. Com base neste raciocínio tentam vender a idéia de uma travessia com risco calculado.
Em artigo anterior, nesta coluna, procurei mostrar que as características do atual ciclo de investimento não referendam a hipótese do risco calculado. Ao contrário, se não for reorientada a política macroeconômica e se não for articulada, imediatamente, uma vigorosa política de competitividade industrial, o déficit comercial só tenderá a crescer, aumentando a vulnerabilidade da economia brasileira diante de qualquer evento desfavorável no quadro internacional.
Hoje a liquidez global é abundante e generosa para com o Brasil, mas essa conjuntura tende a mudar à medida que a recuperação econômica avance no Japão e na Europa. Dentro de mais um ano é provável que essa liquidez global comece a ficar mais escassa, pois será necessário subir os juros e conter a expansão monetária nos países desenvolvidos. Quando isso ocorrer, seremos forçados a efetuar um difícil e custoso ajuste. Os juros reais terão de subir significativamente aqui, jogando a economia numa recessão -com sequelas perigosas, particularmente sobre o sistema bancário.
O quadro de desemprego, inevitavelmente, irá piorar. Essa é uma hipótese bastante plausível para 1999. E isso ainda seria um cenário benigno, pois uma turbulência maior no mercado mundial de capitais pode nos jogar na lona, por meio de uma aguda e causticante crise cambial, financeira e social.

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