São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
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A comédia brasileira

DÉCIO DE ALMEIDA PRADO

A opereta bufa do século 19, que toma como alvo satírico sobretudo a solenidade da ópera e a vetustez da Antiguidade greco-romana, firma-se nos palcos da França e do Brasil com Jacques Offenbach, judeu de origem alemã mas músico francês e personalidade parisiense. É de sua autoria a partitura de "Orphée aux Enfers", estreada em 1858.
A lenda grega do músico que desce ao mundo dos mortos para reaver a sua consorte, perdendo-a, no entanto, já no caminho de saída, quando se volta para vê-la, está, como símbolo, na raiz da música ocidental. Fora usada, entre outros, por Gluck, na sua famosa ópera do século 17. Mas a versão oitocentista inovava bastante. Tanto Orfeu como Eurídice suspiram por outros amores que não o conjugal. Ela não suporta mais os infindáveis concertos de violino -alguns com duração superior a uma hora- do marido. Entre os deuses do Olimpo, para onde Eurídice é levada, após ter sido raptada por Plutão, não reina maior harmonia doméstica. Juno vive ralada de ciúme pelas frequentes escapadas noturnas do seu celeste esposo, Júpiter, ao passo que os mais jovens, Cupido e Vênus, só entram em casa a altas horas da noite. Todos, neste e no outro mundo, só mantêm as aparências por causa da opinião pública, que, fazendo as vezes de coro grego, reivindica o papel moralizante da peça: "Je suis l'opinion publique,/ un personnage symbolique./ Ce qu'on appelle un raisonneur".
Eurídice dá-se bem nos Infernos, que, de resto, nada possuem em comum com o lugar sinistro pintado pelo cristianismo. Ao contemplar Baco em pessoa, em cujos pé se assentam um fauno com cascos de cabrito e uma ninfa dócil, ela entoa com entusiasmo a sua prece pagã:
"Evohé! Bacchus m'inspire
Je sens en moi
son saint délire,
Evohé! Bacchus est roi!".
Ao cair do pano Júpiter avoca Eurídice para si, na qualidade de bacante, sobrepondo-se pela força a Plutão e fazendo Orfeu olhar inadvertidamente para trás ao lançar em cena um de seus poderosos raios. Esses dois golpes sujos não constavam da história grega, mas o Senhor do Olimpo dispõe-se a corrigir os erros do passado: "Eh bien! on la refera, la mythologie!".
"Orfeu nos Infernos" escandalizou alguns críticos e escritores franceses. Houve quem a acusasse de profanar os deuses romanos, como houve quem enxergasse em Offenbach, sobretudo depois de "La Belle Hélène", escrita e musicada na mesma veia cômica e desrespeitosa, o ódio de um semita aos alvos templos erguidos pelos gregos. Entre os seus admiradores, no entanto, figuraram Baudelaire e Nietzsche, Saint-Saëns e Rossini.
De qualquer forma, a invocação de Eurídice -"Evohé! Bacchus est roi!"- ficou entre as rememorações do mais famoso escritor brasileiro do século. Machado de Assis, em suas crônicas ruminativas da maturidade, relembrou-a, mais de uma vez, sempre associando-a ao Carnaval, ao rei Momo, que já começava a firmar a sua realeza no Brasil. Passados 30 e tantos anos da estréia nacional da peça, ele escreveu, em 1896: "A hora é de Momo. 'Evohé! Bacchus est roi!' Sinto não lhes poder transcrever aqui a música deste velho estribilho de uma opereta que lá vai. Era um coro cantado e dançado no Alcazar Lírico (...) As damas, decentemente vestidas de calça de seda tão justinhas que pareciam ser as próprias pernas em carne e osso, mandavam os pés aos narizes dos parceiros. Os parceiros, com igual brio e ginástica, faziam a mesma coisa aos narizes das damas, a orquestra engrossava, o povo aplaudia, a princípio louco, depois louco furioso, até que tudo acabava no delírio universal dos pés, das mãos e dos trombones". Tratava-se do célebre e ainda hoje vivo cancã do Orfeu, a dança popular e grosseira que Offenbach elevou à dignidade do palco, adicionando esse ritmo desenfreado aos da polca e da valsa, já universalmente aceitos. Um ano mais tarde, outra reminiscência sobe à memória do cronista, então próximo dos 60 anos: "Conheci também a Aimée, uma francesa, que em nossa língua se traduzia por amada, tanto nos dicionários como nos corações" (1).
Machado de Assis referira-se a ela, com muito maior entusiasmo, em 1864, quando a opereta subiu à cena. Valeu-se, contudo, para o seu elogio, das palavras de um terceiro ("escreve-me agora um amigo"), um companheiro de letras, talvez real, talvez fictício, inventado neste caso para disfarçar o tom pessoal e como que enamorado. Mas eis o retrato da atriz: "Um demoninho louro, -uma figura leve, esbelta, graciosa, uma cabeça meio feminina, meio angélica, uns olhos vivos, -um nariz como o de Safo, -uma boca amorosamente fresca, que parece ter sido formada por duas canções de Ovídio, -enfim a graça parisiense, 'toute pure' (...)" (2).
Mlle. Aimée não foi a única "divette" de prestígio no elenco do Alcazar Lírico, teatrinho estabelecido no Rio de Janeiro em 1857, com o objetivo de acolher, na língua materna, as cançonetas que estavam na moda em Paris. Mas foi, entre todas, como disse o velho Machado, a que reinou por mais tempo nos corações nacionais, dentro e fora de cena, desde que os espetáculos variados dos primeiros tempos da companhia foram substituídos por operetas completas. Dizem as más línguas da época que por ocasião da sua partida, em 1868, após quatro anos de Brasil, as esposas e mães de família soltaram rojões, comemorando a volta ao lar dos maridos e filhos. A França, do outro lado do Atlântico, não a recebeu com menos carinho. Ela criou alguns papéis em novas operetas de Offenbach, e foi com ele e sua companhia em excursão artística e financeira através dos Estados Unidos, de onde regressou ainda mais rica do que daqui partira. Era a figura da "francesa", em sentido especial, que por bons e maus motivos iria incorporar-se por algumas dezenas de anos ao idioma, se não o escrito, pelo menos aquele falado no Brasil.
Em compensação, nesse mesmo período, em 1866, surge nos palcos parisienses a imagem inconfundível do "Brésilien", dedos carregados de jóias, acompanhado por dois negrinhos portadores de malas e valises. Ele participa com destaque nos episódios burlescos de "La Vie Parisienne", opereta bufa em quatro atos, música de Offenbach, texto de Meilhac e Halévy, a dupla que forneceria a Georges Bizet o libreto da "Carmen". Logo na entrada em cena, como era hábito na opereta, ele declara diretamente ao público quem é e a que veio. Quanto à identidade: "Je suis brésilien, j'ai de l'or/ Et j'arrive de Rio-Janeiree". Quanto ao que deseja:
"Ce que je veux de toi, Paris,
Ce que je veux, ce sont tes femmes,
Ni bourgeoises, ni grandes dames,
Mais les autres... l'on m'a compris!".
A sombra da prostituição elegante, aqui posta em cena, perpassava vez por outra por sobre os camarins da opereta. A "cocotte" européia correspondia ao "rastaquère" sul-americano, que podia ser, igualmente, "Le Péruvien" (alguém escreveria mais tarde que o verdadeiro brasileiro de Offenbach, pela fortuna, era o argentino).
O sucesso do Alcazar deve ser creditado em boa parte ao esnobismo. Nada mais excitante do que ouvir em francês as últimas novidades de Paris. Mas, de algum modo, o uso de uma língua estrangeira, o recurso constante à paródia, subentendendo o conhecimento um tanto minucioso da ópera e da Antiguidade clássica, reduziam o alcance desses espetáculos junto ao grande público. Tornava-se necessário, para popularizá-lo, que alguém traduzisse em termos nacionais tal repertório, tão apreciado pelos escritores e pelas classes abastadas, familiarizados, pela leitura ou pelas viagens, com "La Vie Parisienne". Quem realizou a façanha foi o mais festejado ator cômico do final do século. Francisco Correia Vasques (1829-92) (3), simplesmente o Vasques, quando não o Chico, de todos conhecido de vista no Rio de Janeiro e de fama no resto do Brasil, já começara a desafiar com as suas tiradas humorísticas o Alcazar, antes mesmo de as operetas chegarem. "D. Rosa Assistindo no Alcazar 'un spectacle extraordinaire avec mlle. Risette'±", "cena burlesca", contracenava no espírito do público de teatro com "O Senhor Anselmo Apaixonado pelo Alcazar", ambos de 1863. Mas o verdadeiro achado ocorreu cinco anos depois, com a encenação de "Orfeu na Roça", que deu 500 representações consecutivas. Nas mãos do Vasques, pobres de literatura, mas ricas de experiência de palco, Orfeu aparece sob as vestes de Zeferino Rabeca; Morfeu, o deus do sono, transforma-se num nacionalíssimo Joaquim Preguiça; e Cupido passa a responder pelo irresistível nome de Quim-Quim das Moças. O êxito da fórmula, casando França e Brasil, Offenbach e Martins Pena, foi fulminante. Tivemos de imediato, trabalhados por outras mãos, "Barba-de-Milho", versão de "Barbe-Bleu", e "A Baronesa de Caiapó", diminuição nobiliárquica de "La Grande-Duchesse de Gérolstein" (ducado aliás fictício, inventado por Eugène Sue nas páginas do seu folhetinesco "Os Mistérios de Paris").
Na passagem de uma língua para outra, é verdade, perdia-se muito do sal gaulês, sempre mais leve que a pimenta nacional. Mas, no fim de contas, pensando bem, como o recuo do tempo, que mal havia em semelhantes transposições? Não era a opereta uma obra de palco, completada em cena pelos intérpretes, por suas "cascades" ("lazzi" em italiano, "gags" em inglês), "cacos" que os atores iam enxertando no texto escrito, dando forma definitiva ao espetáculo? Por outro lado, já não significava a paródia, por si própria, uma criação de segundo grau, o rejuvenescimento, pelo riso, de velhos temas? Júpiter, a quem Juno na intimidade chama de Erneste (ela é Bibiche), em "Orphée aux Enfers", observa gravemente, para si mesmo, que "L'Olympe s'en va!" (como o Segundo Império francês também se iria num dia não distante). E Agamenon, em "La Belle Hélène", irrompe em cena cantando um "couplet", com os cortes entre as sílabas gaiatamente introduzidos pela música, dizendo ser "le roi barbu qui s'avance, bu qui s'avance, bu qui s'avance...".
Tantas molecagens eruditas não eram de molde a inibir os tradutores brasileiros. Julgavam-se os resultados obtidos em cena, geralmente avaliados em termos de bilheteria. Se o público aceitava a adaptação, dentro daquele universo de faz-de-conta da opereta, tudo bem. É o ponto de vista expresso por Artur Azevedo, o homem que no momento encarnava o teatro nacional, em sua dupla condição de autor e crítico de enorme prestígio. Defendendo-se da pecha de ter sido o introdutor no país dessas acomodações um tanto espúrias, escreveu ele: "Eu, por mim, francamente o confesso, prefiro uma paródia bem-feita e engraçada a todos os dramalhões pantafaçudos e mal escritos, em que se castiga o vício e premia a virtude" (4).
A controvérsia girava em torno de "A Filha de Maria Angu", versão livre feita por Artur Azevedo, em 1874, do original francês cujo título se assemelhava ao brasileiro pela assonância: "La Fille de Mme. Angot". Dessa década, seguinte à queda de Napoleão 3º em 1870, a opereta adquirira hábitos e feições um pouco diferentes. Diminuíra o seu teor satírico, paródico, contentando-se em desenhar uma história alegre e fantasiosa, colocada bem além do limite da verossimilhança, com toda a liberdade de movimentos proporcionada pela música, pelo fato de os atores passarem sem hesitação da fala ao canto, substituindo de vez a realidade pela teatralidade.
Despontavam novos músicos franceses (na opereta, como na ópera, a partitura vale mais do que a palavra), concorrentes de Offenbach: Charles Lecocq ("La Fille de Mme. Angot", de 1872), Robert Planquette ("Les Cloches de Corneville", de 1877), Edmund Audran ("La Mascotte", de 1880), entremeados com os primeiros vienenses, Franz von Suppé ("Boccaccio", de 1879), Johann Strauss ("Der Zigeunerbaron", de 1885). Todas as peças citadas -e por isso foram elas escolhidas- fizeram intensa e extensa carreira nos palcos brasileiros, em geral em simples traduções, porque os seus enredos, totalmente autônomos, dispensavam referências a fatos e personalidades exteriores ao texto, como acontece na paródia e na sátira. O que não significava que as traduções fossem ao pé da letra, nem que os atores deixassem de contribuir com a sua parcela de inventividade para a criação teatral. Ao contrário, à medida que os intérpretes se sucediam no mesmo papel, crescia a herança de achados cômicos transmitida por via oral de espetáculo a espetáculo.
"A Filha de Maria Angu", no entanto, constituía um caso à parte. A ação na peça francesa passava-se durante o Diretório, nesse desfecho pateticamente cômico das altas aspirações da Revolução Francesa. O autor chamava ao palco algumas pessoas reais, a atriz Mlle. Lange, o cançonetista político Ange Pitou (romanceado por Alexandre Dumas), além de evocar a memória de Mme. Angot, figura mítica, gerada por um sem-número de peças e canções populares, uma vendedora de peixes no mercado, bonita e despachada.
Artur Azevedo deve ter pensado que esse pano de fundo histórico dificilmente chegaria ao público brasileiro. Partiu então para uma completa nacionalização, a começar pelo título. Maria Angu, obviamente, só poderia ser brasileira. Talvez um exemplo baste para sugerir a brutal e no todo bem-sucedida operação de transplante entre duas culturas efetuadas pelo adaptador.
Mme. Angot -é a filha quem narra- não apenas subira aos ares num balão, novidade do século 18, como transpusera depois mares e desertos. Eis a copla correspondente:
"En ballon elle monte,
La voilà dans les airs
Et plus tard elle affronte
Le mers et les déserts".
E eis a versão que lhe dá Artur Azevedo:
"Andou por Sorocaba,
Por Guaratinguetá,
Por Pindamonhangaba,
Por Jacarepaguá".
Não há confusão possível entre os dois universos projetados em cena, um tendente ao grandioso, ao universal (Mme. Angot, em suas andanças, teria estado na Índia e na Turquia, onde foi uma entre as quinhentas favoritas do sultão); o outro, surpreendentemente local e regionalista (todas as cidades mencionadas ficam perto do Rio de Janeiro ou de São Paulo). Mas dois traços permanecem: o ritmo, essencial na opereta, e qualquer coisa de engraçado nessa relação de palavras, todas, talvez não por acaso, polissilábicas e de origem indígena. Pode-se arguir o tradutor quanto à fidelidade, não quanto à veia cômica e à imaginação poética. Artur Azevedo, aliás, era um excelente versejador, por conta própria e alheia.
Mercê de traduções, próximas ou distantes do original, estava a opereta em condições de se aclimatar -com os modismos locais, evidentemente- no Brasil. Restava o problema de achar os intérpretes adequados, não cantores que soubessem representar, porém, de preferência, atores que soubessem cantar, porque a expressão fisionômica, a graça e a simpatia pessoal, a malícia do olhar, da boca e das mãos, a beleza, tratando-se de mulheres, toda essa parte corporal representava um dos pilares do espetáculo.
O teatro português -e por consequência o brasileiro- tinha alguma experiência do canto e da dança popular, adquirida no entremez. A opereta, no entanto, desdobrava-se em nível sensivelmente superior, colocada entre a criação espontânea, brotada do bom ouvido, do simples dom da invenção melódica, e a chamada música erudita, que não prescinde de um demorado aprendizado prático e teórico. Era música para "gargantas inteiras", não para as vozes de "meia garganta" que Eça de Queirós, com certa maldade, viu nos cantores de Portugal. A solução encontrada no Brasil foi a de compromisso: atrizes vindas de fora, principalmente francesas, mas também espanholas e italianas, para os principais papéis femininos, que aliavam sedução e musicalidade; atores nativos para formar o naipe masculino, em que predominava a caracterização cômica. A fórmula era simples: emprestavam-se à Europa vozes devidamente educadas, porque lá havia um mercado musical que ia da canção à ópera, passando pela opereta e ópera cômica, enquanto o Brasil entrava com a sua comicidade, nem sempre fina como a parisiense.
Se fôssemos delinear o quadro completo dessa colaboração estrangeira, sem a qual mal existiria opereta no Brasil, somaríamos cerca de 20 nomes (5). Citaremos apenas os de duas atrizes, as primeiras a se integrar nos elencos nacionais e a representar em português, ambas francesas e ambas, por coincidência, em certo sentido róseas. Rose Méryss, aportada no Rio em 1870, tocada para cá pela guerra franco-prussiana, interpretou modinhas que falavam em "yayá", dançou maxixe e foi, como travesti, a protagonista de um célebre "Boccaccio". Segundo um cronista da época, devia trazer na roupa, escondidas "na barra do vestido, no cantinho do avental", três palavras reveladoras: "Lecocq, Offenbach, Suppé" (6).
Rose Villiot (1850-1908) nacionalizou-se se possível ainda mais, nunca regressando à França. Chegada em 1872, ainda no tempo do Alcazar, viveu e morreu como boa brasileira, exceto no sotaque, que os franceses nunca perdem. Criou, entre tantos outros, o papel-título de "A Filha de Maria Angu", contracenando com uma compatriota, Mlle. Delmary, que fazia o papel da atriz e cantora Mlle. Lange, traduzido idiomaticamente por Artur Azevedo como Chica Valsa.
A contaminação entre as duas línguas foi tanta que levou Machado de Assis a comentar, em 1886, que a arte corrente nos palcos do Rio -e no resto do país, na medida em que neles existia a opereta- era "franco-brasileira": "A língua de que se usa dizem-me que não se pode atribuir exclusivamente a Voltaire, nem inteiramente a Alencar; é uma língua feita com parte de ambas, formando um terceiro organismo (...)" (7). Exagero cômico haverá, mas não muito.

Continua à pág. 5-8

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