São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
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Um crítico à frente do teatro brasileiro

SÁBATO MAGALDI

Ao prefaciar sua última coletânea de críticas, publicadas entre 1964 e 1968, em "O Estado de S. Paulo" ("Exercício Findo", São Paulo, Perspectiva, 1987), Décio de Almeida Prado sintetizou o ideário estético observado desde o ingresso na profissão e no jornal, responsável também pelos volumes anteriores "Apresentação do Teatro Brasileiro" (São Paulo, Martins, 1956) e "Teatro em Progresso" (São Paulo, Martins, 1964).
Afirmou ele:
"O meu esforço crítico, durante a representação e enquanto escrevia, organizava-se com a intenção de entender bem o que os outros falavam, esposando momentaneamente aquele determinado universo de ficção, com as suas leis próprias. Acreditava no destino com os gregos, na Divina Providência com os cristãos, no determinismo com os naturalistas, no materialismo histórico com os marxistas".
Um acréscimo dava conta da ausência de preconceito: "Se a peça se propunha como puro divertimento, julgava-a enquanto tal, acreditando que essa é ou pode ser uma das funções do teatro".
Décio mostra consciência de seu papel, diverso do proselitismo adotado por um Émile Zola, que advogava a implantação dos postulados naturalistas, ou de um Bernard Shaw, que lutou para impor Ibsen e o teatro de idéias. E, reconhecendo embora a extrema importância que tiveram, observa que "talvez convicções tão fortes denunciassem em ambos antes um criador de primeiro grau, um ficcionista, debruçado diretamente sobre o universo ou sobre si próprio, do que esses criadores de segundo grau que são os críticos de vocação específica, que retiram de obras alheias a substância de sua obra, colocando-se como intermediários entre o autor e o leitor".
A busca permanente de isenção não impediu Décio de confessar que "no fundo, bem no fundo, as minhas opções não escapavam ao pessoal". E veio, em consequência, a pergunta, seguida da resposta: "Seria eu, então, essa espécie em extinção, perdida nas brumas do passado, que se chama hoje em dia um crítico impressionista? Temo muito que sim". O conhecimento do estruturalismo e da semiologia não elide a questão, na medida em que "uma coisa é a ciência, outra é a crítica". Enquanto a primeira "tende ao universal", a segunda "detém-se sobre a singularidade, sobre o que cada obra de arte tem de único" -fenômeno agravado no teatro, "onde a comunicação artística se faz através de homens e mulheres, a cujo fascínio maior ou menor o crítico está sujeito como qualquer pessoa". Daí a correta conclusão: "Uma ciência teatral, se conseguirmos um dia constituí-la, ensinará tudo ao crítico, menos que tal atriz e tal peça são medíocres ou geniais. Essa é uma escolha que ele terá de fazer, jogando às vezes tudo ou nada como qualquer espectador".
Evidentemente, esse ideário não esgota os motivos do prazer da leitura da crítica teatral de Décio de Almeida Prado. Eu diria que, antes do claro domínio dos objetivos do seu ofício, sustentado por sólida cultura, que ultrapassa de longe as fronteiras do palco, ele se acha nas virtudes do escritor, um dos melhores de que dispõe a literatura brasileira, em todos os gêneros. Simplicidade e clareza estão, na sua prosa, a serviço da elegância e de uma reflexão profunda.
Há ainda a considerar, para a realização artística do crítico, a consonância dos seus ideais estéticos com os do momento histórico da militância por ele exercida. Décio se forjou no amadorismo que, na década de 40, não aceitava a hegemonia do antigo astro, cujo brilho supunha o sacrifício do conjunto do espetáculo. Dirigiu, com propostas bem definidas, o Grupo Universitário de Teatro, pautado por premissas aparentadas às do elenco de Os Comediantes e do Grupo de Teatro Experimental de Alfredo Mesquita, entre outros. Os melhores amadores paulistas congregaram-se no que se tornou, a partir de 1948, o Teatro Brasileiro de Comédia, logo profissionalizado, tornando-se na década de 50 o mais significativo do país.
Décio escreveu, com humildade, no segundo número da revista "Teatro Brasileiro" (dezembro de 1955): "A história do teatro profissional em São Paulo é curta: tem oito anos de idade, precisamente a idade do Teatro Brasileiro de Comédia. Compreender o TBC, portanto, é de certo modo compreender o próprio teatro paulista: foi à sombra dele que crescemos e nos formamos todos, atores, críticos ou espectadores. Deve-se à sua influência, não contrabalançada a não ser recentemente por outras de igual peso -como a do Teatro Maria Della Costa- a relativa homogeneidade do meio teatral paulista, maior, acreditamos, do que a de qualquer outro no Brasil". Na verdade, o TBC foi, sob o prisma do espetáculo, a concretização do ideal de harmonia de todos os seus elementos, sob a batuta do encenador -batalha que já pertencia a Décio e de cuja vitória ele foi o principal comentarista na imprensa, arauto e proponente de caminhos.
As companhias desdobradas do TBC, seguidoras dos mesmos princípios por ele defendidos, continuaram a ter em Décio o mais competente guia. Acrescente-se que foi sob sua orientação, como professor da Escola de Arte Dramática de São Paulo, que José Renato fez a primeira experiência de teatro de arena no Brasil. E os inícios do Teatro Oficina receberam dele um apoio expressivo.
O afastamento abrupto de Décio da militância crítica, após 22 anos de colaboração ininterrupta no "Estado", deveu-se a um episódio lamentável, que deixou feridas nunca cicatrizadas. Membros da classe teatral, desejando vingar-se da sustentação dada pela empresa aos primeiros tempos do golpe militar de 1964, aproveitaram-se do pretexto de um suposto apoio à censura para devolver o Prêmio Saci concedido aos "melhores" do palco e do cinema. Embora ressalvado o nome de Décio, ele se sentiu pessoalmente atingido, e deixou a crítica. Ora, o jornal era contra a censura, todos os redatores ligados ao teatro também eram, e atribuo a bravata ridícula à imaturidade política de parte do teatro, que preferiu atirar no lixo um seu aliado. Alegando a impossibilidade de continuar a exercer bem sua função, em prejuízo apenas do palco, Décio justificou o fim da atividade com uma pergunta, feita no prefácio de "Exercício Findo": "Com que estado de espírito eu encetaria o elogio de pessoas ou grupos que tinham demonstrado, por gestos concretos, não desejar mais manter relações com o órgão que me servia de veículo?".
Ainda que lamentando o afastamento de Décio da função de crítico, sou forçado a reconhecer que esse afastamento lhe proporcionou um lazer que seria preenchido, ao menos com igual proveito, em outra tarefa do maior relevo -a de historiador do teatro brasileiro. Professor de teatro brasileiro da cadeira de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Décio teve tempo, em longo magistério, de dedicar-se à pesquisa, esclarecendo pontos controversos da história e realizando, no conjunto da obra, a meditação mais penetrante sobre o nosso passado cênico.
O trabalho de historiador de Décio já se tinha iniciado com o ensaio "A Evolução da Literatura Dramática", incluído em "A Literatura do Brasil" (Rio de Janeiro, Editorial Sul Americana, direção de Afrânio Coutinho, volume 2, 1955). Considero-o "o balanço inaugural de toda a expressão teatral brasileira, de um ponto de vista exclusivamente artístico. Em linhas sucintas e objetivas, desenham-se os perfis literários dos nossos principais dramaturgos. As restrições ao ensaio decorrem apenas das inevitáveis lacunas (omitindo-se nomes a nosso ver expressivos), devidas ao limite de espaço que se impôs".
Como consequência dos concursos universitários de doutorado e livre-docência, surgiram dois livros fundamentais sobre João Caetano, situando na verdadeira dimensão a presença de um ator na história do nosso palco. Ao reconstituir, com perfeita nitidez, em "João Caetano" (São Paulo, Perspectiva, 1972), a imagem do intérprete, o estudioso levantou também a fisionomia inteira do teatro brasileiro da década de 30 à de 60 no século passado, projetando-a ainda no pano de fundo da cena portuguesa e da francesa, que lhe forneciam as principais coordenadas. Se Talma, o grande intérprete neoclássico francês, era modelo a quem João Caetano gostaria de ser comparado, as afinidades profundas, tanto no repertório como nas características pessoais, estavam, como o demonstrou Décio, com Frédérick LemaŒtre, o ator que, embora ligado ao repertório menor do melodrama, foi "porventura o maior de toda a história do teatro francês".
Décio fez uma impressionante investigação de fontes: conseguiu identificar e ler uma infinidade de peças, das quais os historiadores haviam legado apenas o nome, às vezes com grafia errada e sem indicação de autor; através das estréias sucessivas de João Caetano, foi explicando a evolução dos gêneros de sua preferência (trágico, romântico e melodramático). E não faltou, em nenhum momento, à objetividade crítica. Décio reconhece que "a única campanha que ele (João Caetano) perdeu, por não compreender a sua importância, foi a da nacionalização do nosso teatro. Essa mesma, venceu-a em parte. Fundou a primeira companhia brasileira, libertando após árdua luta o S. Pedro da tutela estrangeira. Mas não pôde prescindir nem dos atores nem do público português. Ambas as influências não teriam sido prejudiciais -a verdade é que o teatro do Brasil continuaria tributário de Portugal até a Primeira Grande Guerra- se não tivessem contribuído para afastá-lo de nossa dramaturgia, fazendo-o sentir-se independente e superior ao meio, ilusão que lhe custaria, quando a doença já lhe corroera a vitalidade, a perda da ajuda governamental". Quanto a este aspecto, Décio esclarece, em definitivo, a participação de José de Alencar para que João Caetano perdesse o subsídio do governo, o que o levou, quase no fim da vida, a amargar o desamparo financeiro.
Em "João Caetano e a Arte do Ator" (São Paulo, Ática, 1984), Décio examinou o ideário estético do homem do palco, a partir das "Lições Dramáticas", proferidas em 1861. Patenteou-se que ele traduziu, e mal, em grande parte, teóricos europeus. À guisa de esclarecimento, devo dizer que, além das lacunas relativas a Qorpo Santo e Oswald de Andrade, essa descoberta de Décio foi motivo determinante para que eu não reeditasse meu "Panorama do Teatro Brasileiro", que atribuía a João Caetano uma espécie de antecipação das teorias de Stanislavski...
A bibliografia de Décio completa-se, até o momento, com "O Teatro Brasileiro Moderno" (São Paulo, Perspectiva, 1988), "Peças, Pessoas, Personagens" (São Paulo, Companhia das Letras, 1993), que reaproveitou numa das partes "Procópio Ferreira" (São Paulo, Brasiliense, 1984), "Teatro de Anchieta a Alencar" (São Paulo, Perspectiva, 1993) e "O Drama Romântico Brasileiro" (São Paulo, Perspectiva, 1996). Vê-se que, nesse amplo painel, só não estão contemplados o conjunto das comédias de costumes do século 19 e os inícios do século 20, de resto merecedores de análise sintética em "A Evolução da Literatura Dramática".
Pode-se afirmar, em resumo, que Décio tratou, na dezena de livros publicados, de todos os aspectos do fenômeno teatral, privilegiando a dramaturgia, a encenação e o desempenho (no prefácio de "O Teatro Brasileiro Moderno" ele confessa que lhe dói um pouco a ausência, no livro, de cenógrafos e críticos). Se examinou exaustivamente os autores, ainda que seus juízos sejam passíveis, como sempre acontece, de debates, soube analisar em profundidade também os espetáculos, naquilo que falam mais diretamente ao público. Qualquer estudo novo sobre o teatro brasileiro tem de partir, obrigatoriamente, de seus comentários. Demoradas considerações sobre montagens representam o melhor retrato que elas nos deixaram. E Décio revela sensibilidade especial para caracterizar interpretações, à maneira do que fez com João Caetano e Cacilda Becker. Não confio no historiador que não seja bom crítico e não acredito no crítico sem noção definida de História. No caso de Décio, o crítico e o historiador interpenetram-se, para oferecer a imagem de um "scholar" completo do teatro.
Já que se está prestando homenagem ao homem que atinge 80 anos, na plenitude das faculdades intelectuais, desejo ainda ressaltar duas outras facetas de Décio, que testemunhei ao longo de mais de quatro décadas de convívio amigo: a de presidente da extinta Comissão Estadual de Teatro de São Paulo e a de diretor do "Suplemento Literário de 'O Estado de S. Paulo'±".
Chamado, mais de uma vez, a presidir a CET, e em condições adversas, durante a ditadura militar, Décio sempre se pautou por irrepreensível dignidade. Seu único intuito era o de estimular o desenvolvimento do teatro, arte que não sobrevive sem o subsídio estatal. Certa vez, quando esteve em risco, na Assembléia Legislativa, a correta destinação de uma verba extraordinária autorizada pelo governador Carvalho Pinto, ele conseguiu, com sua autoridade, fazer um acordo que preservou intacto o prestígio da CET. A comissão interveio no Teatro Brasileiro de Comédia, que faliria por causa de dívida ponderável, e novos êxitos somaram-se à sua fase áurea, até que fosse devolvido ao empresário Franco Zampari, um dos maiores beneméritos do nosso palco. O critério único observado pela administração de Décio, na CET, foi o artístico, imune a pressões de qualquer tipo, inclusive as censórias. O teatro paulista beneficiou-se de real desenvolvimento, com a colaboração desinteressada de Décio.
Não tenho dúvida em proclamar que o "Suplemento Literário de 'O Estado de S. Paulo'±", por ele dirigido, foi o melhor que se publicou no Brasil. Deixo de enumerar-lhes as virtudes, por ser tema que escapa ao domínio do teatro. Cumpre-me apenas evocar que Décio, avesso a panelinhas, criou oportunidade para que escritores das mais variadas tendências pudessem exprimir-se. Uma boa colaboração encontrava abrigo certo no "Suplemento".
Em determinadas circunstâncias, há qualidades superiores na direção de um "Suplemento" ou de outros órgãos: sobretudo a coragem moral, a intransigência em não aceitar uma injustiça que poderia ser cometida, em razão de denúncias políticas irresponsáveis. Alguém apontou para o jornal que Anatol Rosenfeld, um dos intelectuais de maior envergadura que o nazismo exilou para o Brasil, seria um agente comunista, ou coisa que o valha. Pediu-se que fosse dispensado o seu nome. Décio defendeu-o, solidário com o colaborador, pôs o seu cargo à disposição. Tanto bastou para que o diretor do jornal, de enraizadas convicções liberais, retirasse o seu pedido, que uma criatura de espinha flexível teria julgado ordem peremptória. E sei que Anatol Rosenfeld morreu sem nunca ter sabido do melancólico episódio.
Estou traçando o perfil de alguém que merecerá, no futuro, um busto em praça pública -tenho vontade de brincar. A verdade é que Décio de Almeida Prado, modelo de crítico, se distingue, além de seus outros méritos, como um dos construtores do moderno teatro brasileiro.

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