São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
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O digital e a inteligência coletiva

PIERRE LÉVY
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se começarmos por voltar nossa atenção para sua significação humana, teremos a impressão de que o digital -fluido, em constante mutação- é desprovido de essência estável. Mas justamente a rapidez da transformação é o dado constante e paradoxal da cultura cibernética. Ela explica em parte a sensação de impacto, de exterioridade, de estranheza que nos acomete quando tentamos apreender o movimento contemporâneo das técnicas.
Para o indivíduo cujo trabalho é subitamente modificado; para uma dada profissão (tipógrafo, bancário, piloto) bruscamente atingida pela revolução tecnológica, que torna obsoleto o savoir-faire tradicional e ameaça a própria permanência da profissão; para as classes sociais ou para as regiões do mundo que não tomam parte na efervescência de concepção, produção ou apropriação lúdica das novas ferramentas digitais -para todos estes, a revolução técnica manifesta-se como um "outro" ameaçador. A bem dizer, nenhum de nós deixa de se encontrar mais ou menos nesse estado de despossessão.
A aceleração é tão forte e tão generalizada que mesmo os mais "plugados" são, em graus variáveis, ultrapassados pela mudança, uma vez que ninguém pode tomar parte ativa nas transformações do conjunto das especializações técnicas -aliás, nem mesmo segui-las de perto.
Aquilo que em geral se classifica grosseiramente sob a denominação de "novas tecnologias" encobre, na verdade, a atividade multiforme de grupos humanos, um devir coletivo complexo que se cristaliza de modo mais conspícuo em torno a objetos materiais, de programas informáticos e de dispositivos de comunicação. É o processo social em toda a sua opacidade, é a atividade dos outros que aparece sob a máscara estranha e inumana da técnica.
A culpa pelos impactos negativos deveria ser atribuída sobretudo à organização do trabalho, às relações de dominação ou ainda à inextricável complexidade dos fenômenos sociais. Do mesmo modo, não pertence à técnica o mérito pelos impactos positivos, mas sim aos homens que conceberam, produziram e utilizaram certos instrumentos. Nesse caso, a qualidade do processo de apropriação -ou, em última instância, a qualidade das relações humanas- importa mais que as particularidades sistêmicas das ferramentas, por inseparáveis que sejam os dois aspectos.
Em suma, quanto mais rápida a mudança técnica, quanto mais ela pareça vir do exterior, tão maior será o sentimento de estranheza diante da separação das atividades e à opacidade dos processos sociais. E justamente aqui entra em cena o papel central da inteligência coletiva -um dos principais propulsores da cultura cibernética. Com efeito, a criação de uma sinergia entre competências, recursos e projetos, a constituição e a manutenção dinâmica de memórias comuns, a ativação de modos de cooperação ágeis e transversais, a distribuição coordenada dos centros de decisão -todos estes são fatores que se opõem à separação estanque das atividades, à compartimentação, à opacidade da organização social.
Quanto mais se desenvolverem os processos de inteligência coletiva -o que evidentemente pressupõe um novo questionamento de numerosos poderes-, tão mais amplamente as mudanças técnicas serão absorvidas pelos indivíduos e pelos grupos e tão menores serão os efeitos segregadores ou destrutivos do movimento tecno-social. Ora, o espaço cibernético, dispositivo de comunicação interativo e comunitário, apresenta-se justamente como um dos instrumentos privilegiados da inteligência coletiva.
É por seu intermédio que, por exemplo, os organismos de formação profissional ou de ensino à distância desenvolvem sistemas de aprendizagem cooperativa em rede. Grandes empresas adotam dispositivos informatizados de apoio à colaboração e à coordenação descentralizadas (os "groupwares"). Pesquisadores e estudantes do mundo inteiro trocam idéias, artigos e imagens em conferências eletrônicas organizadas em torno a núcleos de interesse comum.
Profissionais de informática de todo o mundo ajudam-se mutuamente na solução de problemas de programação. O especialista em certo ramo tecnológico ajuda um noviço, ao mesmo tempo em que outro especialista o inicia em um outro ramo.
O espaço cibernético como suporte de uma inteligência coletiva é uma das principais condições de desenvolvimento do próprio espaço cibernético como novidade técnica. Toda a história da cultura cibernética dá testemunho desse processo de feedback positivo, desse processo de auto-sustentação da revolução das redes digitais. O fenômeno é complexo e ambivalente. Sobretudo porque a expansão do espaço cibernético não determina, não garante, automaticamente, o desenvolvimento da inteligência coletiva: ele apenas lhe proporciona um ambiente propício.
Ademais, naqueles casos em que processos de inteligência coletiva desenvolvem-se efetivamente graças ao espaço cibernético, seu efeito mais notável é a aceleração do ritmo de mudança tecno-social, o que por sua vez torna mais necessária a participação ativa na cultura cibernética e tende a excluir de maneira mais radical aqueles que não conseguiram entrar para o ciclo positivo de mudança -de sua compreensão e apropriação.
Por seu aspecto participativo, socializante, descompartimentador e emancipador, a inteligência coletiva constitui um dos melhores remédios para o ritmo desestabilizador, por vezes segregador, da mudança técnica. Mas, ao mesmo tempo, a inteligência coletiva colabora ativamente para a aceleração dessa mudança. Em grego antigo, o termo "pharmakon" (origem, por exemplo, de "farmácia") designa tanto o veneno quanto o remédio. Novo "pharmakon", a inteligência coletiva que favorece a cultura cibernética é ao mesmo tempo veneno para aqueles que não tomam parte nela (e ninguém pode participar integralmente dela, tal a sua vastidão e diversidade) e remédio para aqueles que mergulham em seu turbilhão e logram controlar a própria deriva em meio a tantas correntes.

Tradução de Samuel Titan Jr.

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