São Paulo, quarta-feira, 9 de julho de 1997
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Uma obra-prima

JANIO DE FREITAS

O argumento é maravilhoso: o presidente americano não é proibido de fazer inaugurações quando se candidata à reeleição. O que há de ruim no argumento é que obriga a ver com os mesmos olhos, por exemplo, um Mário Covas e um Inocêncio Oliveira, de repente irmanados numa convergência que jamais se suporia possível.
Foi o melhor argumento até agora criado para atender à necessidade de Fernando Henrique Cardoso, como candidato, fazer de cada inauguração um comício televisivo, enquanto outros candidatos se esfalfam para conseguir um segundozinho nos telejornais, de vez em quando.
O benefício não será exclusivo de Fernando Henrique: jornais e telejornais serão generosos também com alguns governadores, aqueles cuja reeleição fique ameaçada por um "esquerdista", com perdão da má palavra. Os outros, como o Covas que concorra com Maluf, vão depender das ordens que Sérgio Motta dê às televisões.
O argumento é promissor, em todo caso. Permite indagar aos seus utilizadores por que Fernando Henrique, os coronéis do PFL e os seus comandados do PSDB não se unem para providenciar, aqui, também assistência social, salários, aposentadoria, segurança pública e respeito à Constituição tais como existem nos Estados Unidos? Nada disso seria de maior inconveniência política, já que não exigiria limitações à corrupção nem à impunidade.
O risco que o argumento corre é de que alguém o trate como argumento usável por gente de respeito. E use o contra-argumento de que um presidente americano só raramente se ocupa com uma inauguração. E ainda mais raras são as inaugurações que atraiam a atenção pública.
Nos Estados Unidos, como na Europa, as televisões e os jornais são muito mais independentes. Pode-se passar até semanas sem ver um presidente em telejornais. E muito mais sem o ver em jornal. Mas alguém já viu aqui um telejornal que não tenha dado espaço ao presidente, seja qual for o presidente, desde que os telejornais apareceram por aqui?
É com a certeza desta mediocridade nacional que Fernando Henrique e seus operadores no Congresso jogam, para fazer com que cada inauguração, ainda que tão ridícula quanto a do trenzinho da semana passada em Minas, se transforme em um comício televisivo. E inaugurações de ridículos podem ser feitas todos os dias.
É tão escandalosamente óbvio esse propósito e moralmente indefensável, que nem os mais servis governistas aceitaram apresentar um projeto propondo a liberalidade total de inaugurações pelo presidente-candidato. O que levou o senador Guilherme Palmeira a cometer a obra-prima do cinismo sob a forma de projeto: o presidente-candidato pode fazer inaugurações à vontade, mas não pode, ele, apresentar-se ali como candidato. Ou seja, outros fazem em torno dele tudo o que lhe convenha como candidato, tudo o que é próprio de comício. E ele sorridente, acenando, grato, fica recolhendo os efeitos -no comício primeiro e, depois, nos telejornais do dia e nas primeiras páginas do dia seguinte.
Ainda bem que agora temos gente séria no governo.

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