São Paulo, quarta-feira, 9 de julho de 1997
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Um corpo de criança

CLÓVIS ROSSI

São Paulo - Peço ao leitor o trabalho de voltar à capa da Folha de ontem, àquela foto da criança cambojana morta no colo dos pais.
Veja se não é um clone imperfeito de foto semelhante, publicada faz uns 30 anos, de uma criança vietnamita fugindo aterrorizada, sem roupa, queimada por bombas de napalm.
Trinta anos e tudo o que o ser humano conseguiu de evolução foi trocar o preto-e-branco da foto de 30 anos atrás pela foto colorida de hoje. No mais, é a selvageria de sempre.
Cenas como essas me devolvem a uma entrevista coletiva de 1983 (acho) em que o escritor argentino Ernesto Sábato anunciava a criação da associação "Avós da Praça de Mayo". Era um grupo de bravas e dignas senhoras, rostos sulcados pelo tempo e pelo sofrimento, que tentaria resgatar os netos, tragados pela máquina de matar montada pela ditadura militar do período 76/83.
Dizia Sábado: "Nós, adultos, de algo somos sempre culpados. Mas as crianças, de que podem ser culpadas as crianças?"
Talvez pelos netos, fui ficando hipersensível ao horror envolvendo crianças. Deve ser por intuir que o tempo vai se esgotando e talvez não possa estar por perto para tentar protegê-los até que possam se defender sozinhos.
Ou a certeza de que o mundo em que vão crescer não é nem mais seguro nem mais civilizado do que o mundo em que crescemos os avós ou os pais.
Talvez já não corramos o risco de uma bomba única que mate a todos, mas morremos um pouco a cada dia de balas perdidas ou não tão perdidas, de ódios políticos e raciais, de uma violência tão enorme que banalizou o sofrimento, de impotência ante tudo isso e muito mais.
Fica a sensação de que o ser humano não foi a melhor das obras divinas. Ou então a de que deu curto-circuito no laboratório da evolução das espécies e o bicho homem não conseguiu se livrar da besta-fera primeva aninhada nas suas entranhas.

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