São Paulo, quinta-feira, 10 de julho de 1997
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Comédia empresarial paulista

OTAVIO FRIAS FILHO

O mundo empresarial ocupa um espaço cada vez maior na nossa época. O declínio do Estado-nação, a quebra dos sindicatos, o esvaziamento da Igreja, o fim das ideologias: tudo isso são transferências de poder das instituições políticas para a Empresa, que se torna, onde ainda não era, o mecanismo central da sociedade.
Só essa percepção já justificaria o crescente interesse pelos dramas empresariais, pelos conflitos do alto executivo, ocultos entre as páginas de economia e a coluna social. Não é de hoje que as novelas exploram o filão; mirabolantes transações acionárias acertadas entre uísques e gargalhadas são um clássico do gênero.
Mas de repente surgem duas peças de teatro, ambas escritas por empresários, ambas dispostas a virar o mundo empresarial pelo avesso ao projetá-lo na própria família do empresário. "Brasil S/A", de Antonio Ermírio de Moraes, foi um sucesso de público; "Cheque ou Mate", de Ricardo Semler, vai pelo mesmo caminho.
São espetáculos bem montados, com bons atores e estrutura profissional, o que ilustra o quanto seria benéfico para o teatro se outros empresários se interessassem por ele, mesmo que sem seguir o exemplo desses dois criadores do que se poderia batizar de comédia empresarial paulista, cujos méritos cabe à crítica avaliar.
Mas o interesse social do assunto é evidente, ampliado pelo contraponto entre os dois textos, que têm muitos aspectos em comum. A peça de Ermírio é extremamente esquemática, como se saísse -e saiu- da prancheta de um engenheiro. Há uma tese a ser demonstrada e o enredo cuida diligentemente dessa missão.
No caso de "Cheque ou Mate", a intenção doutrinária desaparece, os personagens ganham espessura, mesmo sem sair de seus tipos básicos, a trama dá mais voltas antes de concluir. Certas ambivalências, recalcadas na peça de Ermírio, irrompem na de Semler: a câmera de tortura, o jogo masoquista com a amante.
No entanto, descontadas as diferenças de elaboração e estilo, é como se fosse a mesma história contada de pontos de vista, pai e filho, opostos. O ponto de partida é a decisão de vender os negócios. Acossado pela família, pelas multinacionais e, na peça de Semler, pelos dramas do sequestro, o empresário quase sucumbe.
A ordem é restabelecida no final, como é próprio da comédia, nos dois casos pela reconciliação com o primogênito. Em Ermírio, essa harmonia é acumulativa, produtivista, pai e filho se dão as mãos para recomeçar (quase) do zero. Em Semler, ela se abre numa divertida ambivalência entre desprendimento e negociação.
Pai e filho são heróis, o grande personagem é o dinheiro, as mulheres têm função subsidiária em cena. Empregadas são cômicas, mães são apagadas, filhas são fúteis. Machismo empresarial, talvez, que faz lembrar outro autor empresário, Parkinson, e sua famosa proposição: "Quem é capaz de gastar mais, a mulher ou o Estado?"

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