São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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Florbela, uma atriz rebelde

BENJAMIN ABDALA JUNIOR

A circulação cultural entre os países de língua portuguesa, neste momento de globalização da economia, pode se revestir de uma lógica perversa: a estandardização dos produtos. Mas não é esse o caso da edição brasileira da obra de Florbela Espanca. Na introdução, Maria Lúcia Dal Farra volta-se para a recuperação da singularidade literária da poeta portuguesa, sem o sensacionalismo descaracterizador que tem envolvido a recepção de sua obra.
O estabelecimento de texto, a partir de fontes primárias, mostra-se fidedigno. As coletâneas poéticas de Florbela seguem uma ordem cronológica: "Trocando Olhares" (1915-1917); "Livro de Mágoas" (1919); "Livro de 'Sóror Saudade'±" (1923); "Charneca em Flor" (1931); "Reliquiae" (1931); e "Esparsa Seleta" (1917-1930).
Ao construir uma nova imagem de Florbela, Maria Lúcia mostra-se impiedosa na denúncia das "apropriações ideológicas" de sua obra por uma crítica que considera incompetente e que estaria associada à atmosfera tacanha do Estado Novo português. Entretanto, a ótica da organizadora não deixa de ser ideológica em sentido diverso. A apropriação que se explicita no seu texto é outra: constitui manifestação de idéias-forças balizadas pelo influxo das perspectivas feministas.
É dentro desses princípios comunitários de gênero que Maria Lúcia caracteriza Florbela Espanca -vida e obra, destacando o que nelas havia de radical. Para tanto, a crítica realizou uma investigação das fontes em Lisboa, tendo acesso a textos inéditos da poeta, experiência que deu origem ao livro "Florbela Espanca - Trocando Olhares" (1). Estão nesse estudo consagrado à discussão de "Trocando Olhares", as bases teóricas e críticas da edição brasileira dos poemas de Florbela, que agora se publica. Entretanto as análises procedidas não apenas colocaram em xeque o lugar-comum dessas leituras preconceituosas, como questionaram os próprios atores dessa crítica estereotipada.
Na verdade, o "Trocando Olhares" de Maria Lúcia não se limitou à busca de motivos condutores que explicassem o sentido da poética de Florbela a partir de imagens de suas primeiras produções, nem às múltiplas visões que afinal acabam por envolver o crítico com o seu objeto de estudo; seus olhares atingiram sem complacência o responsável pela organização das obras completas da poeta, qualificado de "empresário". Maria Lúcia, conforme enuncia na introdução dessa publicação, pretendia que ela fosse também entendida como "ato público de repúdio à referida publicação do empresário português".
Desencadeou-se então, em jornais de Lisboa, toda uma polêmica. Não é oportuno entrar nela neste momento. Entretanto, para quem se preocupa com as relações culturais entre Brasil e Portugal, pode ser importante assinalar a imagem que se configurou entre os atingidos: uma crítica (brasileira e mulher), de uma distância atlântica, insurgia-se contra convenções instituídas a respeito de Florbela. Talvez se possa afirmar que pode residir precisamente nesse descentramento (perspectiva que associa o olhar feminino com a ótica brasileira) uma das razões da nova visão de Florbela, que Maria Lúcia acaba por propiciar.
Polêmica à parte, o gesto crítico da pesquisadora brasileira é motivado pela adesão empática à personalidade e à obra de Florbela. Constrói-se assim um novo percurso histórico-literário para a escritora. Evidenciam-se outros elos de conexão e a imagem de Florbela associa-se, conforme o leitor pode melhor inferir no estudo introdutório da edição brasileira dos "Poemas de Florbela Espanca", a um Portugal democrático e republicano que foi sufocado pelo Estado Novo. A falta de perspectiva que levaria Florbela ao suicídio não deixaria de manter uma relação de analogia com os destinos de seu próprio país.
Pouco antes de sua morte, ela colaborou com poemas e contos na revista "Portugal Feminino" e participou de reuniões com intelectuais e feministas responsáveis pelo periódico. Sua poética inovadora não se distanciou de seu comportamento social irreverente, tendo se casado por três vezes. A República Democrática Portuguesa instituiu o divórcio, mas nenhuma mulher tinha coragem de solicitá-lo. Florbela fez de si mesma a imagem da transgressão dos modelos femininos veiculados pelo clero conservador de seu país. Ela não se ajustava aos figurinos patriarcais da mulher, e a oposição a ela cresceria, com ataques de toda ordem, à medida que sua coletânea poética "Charneca em Flor" transformava-se num estrondoso sucesso editorial.
O salazarismo procurou apagar a sua presença literária, mas o sentido inovador de sua poética foi recuperado sobretudo por importantes poetas das mais variadas tendências: José Régio, Manuel da Fonseca, Jorge de Sena e Vitorino Nemésio. A recepção de sua obra pode ser ilustrativa dos equívocos de uma crítica colada a um biografismo fácil, sem maior conhecimento de aspectos relevantes de sua vida e sobretudo de sua poética. Essa observação vale tanto para os detratores preconceituosos quanto para boa parte de seus primeiros defensores, mais preocupados em desculpá-la, deixando-a menos distante dos padrões estéticos e ideológicos do salazarismo. Estes últimos não percebiam que sua força poética vinha justamente do caráter feminino e marginal de suas produções.
Maria Lúcia traça o percurso poético de Florbela, situando-a dentro desse duplo descentramento. Já em seus primeiros poemas, mais presos à oralitura ("literatura oral"), Florbela inverte a tradicional relação de vassalagem homem/mulher, de forma a mostrar uma aspiração libertária mais ampla e complexa. Para tanto, no conjunto de seus poemas é de se observar a concretização dessa aspiração utópica, que, nas palavras da organizadora, acaba por criar um "mundo-fora-da-existência".
Expressa-se, assim, em Florbela, um jogo de sedução feminino que remete a mulher para o âmbito da marginalidade: "E o poema se torna então uma operação sensitiva, onde a dor é a matéria-prima capaz de criar, apurar e transfigurar o mundo, a grande e original via -o único atalho verdadeiramente feminino- de conhecimento". Desse ângulo de visão melhor se delineiam problemas de identidade poética que têm sua maneira de ser na diferença de gênero e da forma como a tradição literária tratou dessas diferenças. O impacto da obra de Florbela pode ser creditado ao caráter inaugural de sua poética centrada na condição feminina e ao fato de não se constituir nesse país uma sólida tradição dentro dessa literatura de gênero até os tempos finais do salazarismo.
No Brasil, de onde Maria Lúcia analisa a obra de Florbela e o que dela diz a tradição crítica portuguesa, ao contrário, formulações discursivas dentro de uma óptica feminina já aparecem no romantismo. Os tradicionais papéis culturais, que colocam a mulher como apêndice do homem, são rastreados pela crítica brasileira na obra de Florbela. Marginal e feminina, ela figura nesse estudo como uma atriz rebelde, pautando-se por estratégias questionadoras do gesto conformista. Não se trata de uma comutação de papéis, o feminino em vez do masculino, mas de se alcançar uma produtividade poética na relação entre os dois "habitus".
É dessa forma que Maria Lúcia Dal Farra procura dar sentido à trajetória poética de Florbela Espanca. Ao frequentar as máscaras sociais, a poeta coloca-se simbolicamente nos limites mais estreitos da condição feminina (sua "persona" é uma sóror), justamente uma estratégia para melhor despi-la através da sedução (erótica) de sua linguagem poética.

Nota:
1. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994.

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