São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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O poder da intuição

VICTOR KNOLL

Correndo o risco das reduções -não no sentido elevado de lidar com as coisas simples, mas de empobrecer situações ricas-, podemos dizer que, ao enfrentar o questionamento estético, Croce se defrontou, ao menos, com quatro grandes linhas de pensamento: a tradição hegeliana em seus diversos matizes; outra, legatária da Estética do Gênio, que via a arte como explosão do sujeito -ambas contaminadas pela evolução tardia do romantismo, embora distintas-; uma terceira, de inspiração científica, que se alimentava da então nascente psicologia experimental; e, por fim, uma consideração da arte de caráter sociológico calcada no positivismo. A reflexão de Croce sobre a arte, e em particular sobre a poesia, procurou superar a herança dessas vertentes que, durante a segunda metade do século 19, empolgaram a estética.
Dentro dessa atmosfera intelectual, Croce apresenta à Accademia Pontaniana de Nápoles uma dissertação na qual já reconhece o conceito de expressão como norteador da estética, conferindo à disciplina o estatuto de linguística geral. O desenvolvimento deste trabalho resultou na publicação, em 1902, da "Estética Como Ciência da Expressão e Linguística Geral". O "Breviário de Estética" aparece em 1913 e representa a síntese deste primeiro período; já a "Aesthetica in Nuce", obra da plena maturidade, ganha o público em 1929 -em sua economia, pode-se dizer que nela encontramos a cristalização das concepções de Croce sobre a obra de arte.
O itinerário teórico de Croce importa em certas flutuações de ponto de vista, que não comprometem a unidade de seu pensamento sobre a arte -que, aliás, respira até um certo caráter de sistema-, uma vez que os conceitos de intuição e expressão desempenham papel diretor ao longo de suas interpretações do fenômeno artístico e da criação poética, que se estendeu por quase 50 anos.
Para Croce a atividade artística se distingue de todas as demais, bem como o seu produto, a obra de arte -um "indivíduo" dotado de peculiaridade, ainda que manifeste múltiplos aspectos da experiência humana. A especificidade do fenômeno artístico deriva do reconhecimento que a intuição é o motor da produção de suas obras. Aí temos o ponto central da concepção croceana: a arte é intuição, que não se confunde com a apreensão espontânea do mundo (perceptual), nem com a conceitual (teórica). Assim, a intuição se caracteriza como pré-perceptual e pré-lógica. A obra poética não é "explicável" pela experiência mundana do poeta, nem pelas possíveis posições teóricas que tenha assumido. "Explicar" a obra poética servindo-se do histórico, dos impulsos da vida passional ou da psicologia é esquecer o que há de mais íntimo na obra: o teor lírico. E é a intuição que dá "corpo" aos sentimentos mediante as figuras de linguagem.
A história alimenta a intuição, porém não a explica. A obra de arte tem a sua origem no eu, na subjetividade que, ao intuir, expressa o imaginário, isto é, um "organismo" de imagens verbais, visuais ou sonoras, dotadas de significação. Certamente podemos sugerir que o binômio intuição-expressão resgata o sentido grego do termo "poiesis": a produção de um indivíduo que manifesta significações, fazer específico que se distingue da percepção e do conceito. Assim, o poeta tem a matéria do poema na história e em suas experiências, as quais, assumidas pela intuição, se realizam como expressão. A obra de arte é fundamentalmente um ato "lírico". Tais são os pressupostos do "Breviário de Estética" e da "Aesthetica in Nuce", os quais também se encontram formulados nestes dois textos de síntese.
Um ponto importante decorre da visão croceana da gênese da obra de arte: a desqualificação dos gêneros poéticos -em que pese à tradição de mais de dois milênios, de Platão ao século 19. A arte como intuição e expressão, ainda mais, redunda no abandono, sob o ponto de vista substancial, da classificação das obras poéticas segundo os gêneros épico, lírico e dramático. Aqui Croce se distancia de Hegel, em cuja estética a teoria dos gêneros tão bem organizara, no jogo da subjetividade do lírico e da objetividade do épico, a "lógica" do mundo poético.
Agora, a intuição determina "liricidade" para qualquer obra de arte -e não apenas para os produtos da poesia como arte particular. O subjetivo está sempre presente e, uma vez combinado com o expressivo, ambos são constitutivos das obras tomadas como "indivíduo" -este poema, esta pintura, esta sonata etc. Assim, o "lírico" recobre todas as manifestações que os compêndios escolares denominam "poesia épica", "poesia lírica" e "poesia dramática". A diferença entre as obras deve ser reconhecida pelo "motivo" que as anima, isto é, deve-se apreender o ânimo da obra. "Mas a lírica não é efusão, não é grito ou pranto; bem ao contrário, é ela própria objetivação, por meio da qual o eu se vê a si próprio em espetáculo, e se narra e se dramatiza; e esse espírito lírico forma a poesia da epopéia e do drama, que, por isso mesmo, não se distinguem da primeira se não em coisas extrínsecas" ("Aesthetica in Nuce").
Ao reconhecer o sentimento que a obra transpira, pode-se então apreeender o caráter particular da expressão -identifica-se a obra. O ânimo da obra reúne intuição e expressão. Entretanto, estaremos sempre lidando com aproximações, pois a poesia -e por extensão, a obra de arte- é um indivíduo inefável, no sentido de que a descrição do poema estará sempre aquém de suas possibilidades expressivas. "Em cada palavra de poeta, em cada criação de sua fantasia, estão todo o destino humano, todas as esperanças, as ilusões, as dores, as alegrias, as grandezas e as misérias humanas, o inteiro drama do real, que acontece e cresce continuadamente sobre si mesmo, sofrendo e alegrando-se" ("O Caráter de Totalidade da Expressão Artística", texto de 1917, acrescentado na edição de 1946 às quatro lições do "Breviário de Estética", de 1913).
O ponto de vista de Croce está centrado no poder da intuição lírica. Todos os produtos da livre fantasia encontram nesse conceito a sua unidade ou, ainda, poderíamos dizer, tal conceito convém para todas as artes.
Impõe-se uma questão de método. As imagens, constitutivas da obra, são produtos da intuição e não da percepção. E, ainda, diferenciam-se do conceito. As imagens são idealidades. Assim, a ambição científica -experimental e objetiva- da sociologia e da psicologia revela-se inoperante para desvendar as significações da poesia. A intuição produtora de imagens não se confunde com o âmbito prático, que, da ótica de Croce, se realiza na economia, na política e na moral. Assim, Croce afasta o historicismo, mas não a história -esta, depositária da experiência efetiva, matéria da intuição lírica e sobre a qual se aplica o poder da intuição. Para Croce o poema -a obra de arte- é irredutível. As intuições metaforizam sentimentos, não importa a época, não importa o lugar, qualquer que seja o poeta.
Sob esse aspecto, de certo modo, Croce retoma a distinção já feita por Aristóteles entre a poesia e a história (enquanto relato). Talvez, possamos dizer e grafar da seguinte maneira: de um lado temos a "história" enquanto experiência vivida pela comunidade e pelo poeta, de outro, a "História" enquanto discurso que procura compreender a experiência vivida. Croce se opõe à História quanto à compreensão da obra de arte e não à história, manancial de experiências. O poeta, graças ao poder da intuição, dá expressão à história, ao "pathos", ao conjunto das impressões, desejos e paixões vividos pelo poeta em seu tempo -ou, como o fez Shakespeare, resgatando o "pathos" da história. De resto, convém frisar que não se trata da desvalorização da ciência histórica enquanto tal, no que importa em conhecimento próprio. Lembremos que parte da obra croceana é dedicada aos estudos históricos como, por exemplo, a "História da Itália de 1871 a 1915".
Afirmando a irredutibilidade da arte, Croce discute a sua autonomia e complementaridade em relação aos outros âmbitos da vida espiritual. Aqui temos um traço hegeliano: as atividades do espírito formam um tecido lógico de condicionamentos e superações. Em cada atividade espiritual pode-se entrever a totalidade do espírito. Entretanto, talvez, mais do que a influência hegeliana, Vico e De Sanctis estejam presentes no pensamento de Croce.
A teoria estética de Croce se assenta sobre um tripé conceitual: a arte tem a sua origem na intuição do indivíduo e se realiza como expressão; a intuição implica sentimentos que se tornam imagens e, assim, a arte é essencialmente lírica (já Vico lembrara a coincidência entre o sentimento e a fantasia); conteúdo e forma constituem uma unidade (ponto já tratado por Hegel e que se converteu num "leitmotiv" da estética da segunda metade do século 19). Outro aspecto da teoria croceana é a relação entre arte e linguagem (que fica aqui apenas mencionado).
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À atual edição somam-se outras duas traduções, certamente já esgotadas, uma do "Breviário de Estética", de Miguel Ruas, e publicada pela Atena Editora na década de 40, outra, da "Aesthetica in Nuce", sob forma mimeografada, que apareceu em meados dos anos 60 sob a responsabilidade do Centro Acadêmico de Estudos Literários da Faculdade de Filosofia da USP e assinada por Rodolfo Ilari e Maria Inês de Paiva, as quais, além da atual edição, são exemplos que devem ser seguidos na delicada arte da tradução. Em nota de rodapé à "Nota do Organizador" é lembrada uma tradução publicada em Lisboa por R. D'Almeida.
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O leitor estaria mais bem servido se a nota do organizador abrisse o volume, ao contrário de ficar -por assim dizer- escondida nas últimas páginas, pois ali temos o relato das circunstâncias que envolveram Croce ao escrever as duas obras. Aliás, o nome do organizador da edição, que não consta da página de rosto, mas apenas na assinatura de sua nota no final do volume -lugar de apêndices e glossários-, é Giuseppe Galano.

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