São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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Um novo começo

CIBELE SALIBA REZEK

Alguns autores se notabilizam pela percepção de temas que, por sua oportunidade, colocam em discussão o tempo presente, expondo algumas de suas fraturas. É o caso de G. Arbix, que se propôs a refletir sobre a câmara setorial da indústria automobilística, investigar seus significados e dimensões, "esmiuçar as razões" de cada um dos atores, bem como dos processos que permitiram e dificultaram os horizontes de negociação.
Este livro pretende caracterizar as relações entre capital, trabalho e Estado no Brasil, nos momentos críticos dos anos 90. O caráter de "aposta no futuro", a "possibilidade de um novo começo", dentro do marco destas relações, sinaliza uma promessa, como quer o título, nos anos difíceis subsequentes à "década perdida".
Entre 1980 e 1990, configurou-se uma transição política que Arbix qualifica como "tímida e conservadora". Do enfrentamento passou-se à negociação tripartite: os atores vislumbraram uma arena onde a interlocução foi possível, algo quase impensável no período anterior. O que está em questão é o fato de esta cena se desenrolar em meio a uma crise decisiva, num país onde as matrizes excludentes estavam consolidadas, em pleno período de declínio mundial do emprego. Entre seus resultados, o nível de emprego na cadeia automotiva chega até mesmo a aumentar. Apesar da crise, a participação do setor no PIB alcança seus melhores resultados entre 1993 e 1994, permitindo uma reestruturação produtiva negociada. "Mas o que teria aproximado velhos oponentes, depois de uma longa e dissonante história, como se num instante de lucidez tivessem descoberto que a verdade de cada um habitava seu inimigo?" -eis a pergunta central de Arbix. Ela vai sendo respondida pela demonstração de que os episódios descritos e analisados marcam uma inflexão na história de cada um dos atores, constituindo uma esfera institucional inequivocamente democratizante.
A novidade radical das câmaras setoriais reside na presença do terceiro ator -as representações sindicais dos trabalhadores- nas mesas de negociação que instituíram uma bem-sucedida política industrial para o setor. Esta novidade se transforma num caso de "mesocorporatismo", uma forma inédita de sua qualificação no contexto brasileiro. Arbix tem consciência das virtudes e limitações de alcance dos operadores teóricos escolhidos. Falta a eles "uma visão geral do Estado na sociedade capitalista" e esta carência parece remeter à forma de caracterização e compreensão das transformações do lugar e do papel do Estado, de seus vínculos com os interesses privados, da coexistência de estruturas diversificadas e submetidas a comandos conflitantes. Como resultante, Arbix acaba por desenhar uma saída pela escolha entre posições diferentes, marcadas pelo contraponto entre "capitalismo organizado" e "corporatismo moderno", a partir da noção de "reorganização estrutural".
O ineditismo da câmara da indústria automobilística colocou um campo de debates novo, de difícil interpretação, se confrontado com a história das relações capital/trabalho no Brasil. As dificuldades de compreensão residem especialmente na fusão e entrelaçamento das formas de consentimento e confronto, consenso e dissenso, bem como na sua explicitação. Arbix dá conta deste conjunto de processos com uma pesquisa bem-delineada, que apresenta os dados e as ambiguidades a partir do material coletado, traçando os dilemas com que se defrontam os atores, entre eles a questão da arrecadação de impostos. A demonstração de que, a partir da superação das metas de produtividade, a arrecadação de impostos cresceu contrapõe-se ao fato de que parte significativa dos delegados ao 5º Congresso da CUT avaliava "que a população em geral sai perdendo com as câmaras", mesmo que elas tornassem melhor a vida dos trabalhadores do setor.
Há ainda uma outra questão que se anuncia com clareza: o ineditismo de um mecanismo institucional, a partir do qual o movimento sindical pôde sair do lugar em que historicamente foi colocado, e, desta forma, falar para o conjunto da sociedade. Assim, a inclusão das câmaras, não sem problemas, no programa de governo do candidato Luís Inácio Lula da Silva, não foi fortuita. Tampouco a dissolução de seu horizonte de ação a partir do plano Real, bem como ao longo do governo FHC.
É ainda no quadro deste tipo de análise que foi possível qualificar a interlocução desenvolvida com sucesso, nos anos 1993/1994, como "quase pública". "Quase", porque corporatista, mais precisamente "mesocorporatista". O "quase público" se refere ao hibridismo das relações entre Estado e sociedade, marcado por um movimento pendular entre pluralismo e corporatismo? Como se identificam ou se diferenciam "público", "quase público" e "Estado"? Pode-se caracterizar como pública pela metade a conquista do poder de fala e da possibilidade de ser ouvido na elaboração de uma política industrial setorial? O que falta para sua inteira publicização?
Se, de um lado, o reconhecimento desta "metonímia social", promovido pelas instâncias neocorporatistas, enriquece e precisa os ângulos de abordagem, por outro, colocam-se dilemas que Arbix aponta de modo claro, crítico e, em certa medida, melancólico, diante do esvaziamento da câmara do setor automotivo. A combinação de processos de confronto e de consenso, bem como os conflitos anteriores, permitindo a presença dos trabalhadores como interlocutores qualificados na câmara setorial, pode ser enunciada como possibilidade de constituição de uma esfera inteiramente pública de legitimidade e visibilidade, de negociação e democratização.
Deste ângulo, as câmaras são "também" neocorporatistas e mesocorporatistas, porque, ao explicitar interesses -conferindo-lhes medida, explicitando negociações-, demonstraram que, como formula Arbix, "a democracia é capaz de estimular positivamente a economia".

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