São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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Sem medo da história

ELIAS THOMÉ SALIBA

Era assim que Joyce resumia esta espécie de temor ocidental frente a uma história apocalíptica e finalista, enredada no fluxo agônico e evolutivo do tempo: "Ouço a ruína de todo espaço, do vidro estilhaçado e de paredes que caem, e o tempo, uma lívida flama final". Misturado aos modismos criados pela proximidade do fim do milênio, este temor coletivo aparece e desaparece, em eterno retorno.
Contornando provisoriamente este medo, os historiadores das últimas duas décadas abandonaram os rígidos padrões do projeto histórico iluminista, filhos do indissolúvel casamento entre história e razão. Este casamento acabou, bruscamente dissolvido pelos principais sinalizadores filosóficos deste século. E talvez porque os filósofos tenham sido obrigados a sinalizar e considerar um novo personagem no cenário da história contemporânea: as "massas" e os "símbolos de massa" que, a rigor, ainda não existiam no projeto iluminista e cujos traços mais salientes seriam, na sempre perturbadora definição de Elias Canetti: "A densidade, o crescimento e a abertura para o infinito, a coesão surpreendente e notável, o ritmo comum e a descarga súbita".
Passando ao largo desta temática do "fim da história" que, a julgar pelos seus cultores, parece gozar de eterna juventude, abandonando as grandes teorias e paradigmas e incentivando o gosto, não pela abstração das massas, mas pela singularidade dos homens comuns, os historiadores das duas últimas décadas produziram, se não um santo remédio aos temores de Joyce, pelo menos um lenitivo muito ao gosto tanto dos receios quanto das seduções do público. É o que se percebe em duas coletâneas que se dedicam ao mapeamento dos principais temas e tendências na teoria e nos métodos da história, das duas últimas décadas.
A primeira, "Domínios da História", traça um amplo e atualizado painel dos vários campos de investigação histórica, lançando olhares críticos tanto sobre territórios mais tradicionais -como a história econômica e a história social- quanto sobre áreas mais recentes -como a história cultural e a renovada história política. A introdução que abre o volume, escrita por Ciro Flamarion Cardoso, já indica, com sensatez, os caminhos a serem trilhados: "Vivemos com um pé num mundo ainda presente, mas em vias de superação, e o outro pé num mundo que ainda está nascendo. Como teorizar, nestas condições, sobre as sociedades vistas holisticamente, se elas estão em pleno devir para se tornarem 'outras', se bem que no quadro, ainda, do capitalismo?". É um indicativo notável de que os capítulos, cada um na sua especialidade, não estão preocupados com as grandes configurações teóricas e que, talvez, menos do que um "embate de paradigmas", já é o paradigma "pós-moderno" que informa a maioria das explanações.
De qualquer forma, trata-se de um dos mais amplos e completos painéis do estado atual da historiografia: 20 capítulos, dos quais pelo menos a metade realiza um mapeamento dos mais fecundos campos de investigação histórica nas últimas décadas: história agrária, urbana, empresarial, das paisagens, da família, do cotidiano e da vida privada, das mulheres, da sexualidade, das etnias e das religiões. Cada uma destas incursões levanta formidáveis questões metodológicas, impossíveis de se indicarem ainda que sob forma de um ligeiro comentário.
A segunda coletânea, "A Velha História", não faz jus ao título, pois seus variados capítulos tratam muito mais de territórios e questões historiográficas das duas últimas décadas do que dos temas mais "antigos". Salvo pela ironia -que, afinal, não se explica-, fica-se perguntando o porquê do título, não apenas pela juventude dos colaboradores, mas sobretudo porque o que se chama de "itens clássicos da teoria da história" -fontes, espaço, tempo, estrutura e sujeito- são todos debatidos em função das reflexões mais recentes, todas elas negadoras do estatuto da "grande" teoria.
Os 10 capítulos que compõem o livro, em desiguais (e saudáveis) modulações mostram, em conjunto, uma regressão aos procedimentos internos da historiografia: forma narrativa, intertextualidade, hermenêutica, estratégias de representação etc. A história aí é "velha" somente no título, já que a hesitação teórica é nova, e reflete a mesma crise de paradigmas, pois se concentra no debate propriamente metodológico. Com exceção do último capítulo de "A Velha História" e de rápidos comentários em "Domínios da História", muito pouco se trata das mesmas tendências e linhas de produção historiográfica no Brasil. Ausência compreensível, dados os objetivos e limites das obras.
Para compensar tal ausência, pode-se ler "As Formas do Mesmo", livro que se compõe de dois ensaios, bem mais verticalizados, sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e de Oliveira Vianna. O ensaio sobre Vanhagen é o mais longo do livro e, a nosso ver, o mais importante, porque começa a cobrir uma lacuna já antiga nos estudos de historiografia brasileira. Com seus cinco fornidos volumes encadernados, mais conhecidos do público por ajudar a preencher estantes vazias, a "História Geral do Brasil" de Varnhagen (pelas lombadas dos livros, mais conhecido como Visconde de Porto Seguro) sempre padeceu de uma ingrata fortuna. Fortuna que começou com a desastrada comparação culinária que, certa feita, lhe fez Oliveira Lima, considerando sua obra como "peça de resistência da nossa refeição histórica, o assado gordo, sólido e apetitoso, na sua simplicidade portuguesa, sem temperos franceses, com molho leal e nenhum acompanhamento". Fortuna que depois prosseguiu, cristalizando-se em estereótipos: ressaltou-se, superficialmente, o reacionarismo empedernido de Varnhagen, sua concepção providencialista da história, seu fetichismo pelo Estado monárquico, sua ideologia do branqueamento e seu temor pelo "fim da história" -claro que na sua versão "tupiniquim", ou seja, o temor de que a sociedade brasileira pudesse retroagir ao nível das sociedades indígenas.
Nilo Odália constrói uma interpretação densa desta nossa "historiografia de fundação", mostrando como estas obras fundantes e finalistas da nossa história desdobraram-se em concepções de nação, Estado e sociedade que impregnaram não apenas o pensamento historiográfico brasileiro, mas todo o nosso imaginário político e social. Brito Broca que, já em 1950, apontava a frustrante ausência de um estudo mais sério da obra de Varnhagen, provavelmente iria se sentir satisfeito com os ensaios contidos em "As Formas do Mesmo".
Tudo isto mostra quanto o próprio estatuto da teoria se transformou. Embora menos ambiciosa do que antes, hoje ela parece se sobrepor às vazias oposições entre racionalistas e irracionalistas. As duas coletâneas e o ensaio sobre a nossa "historiografia de fundação" mostram o quanto a própria historiografia se transformou num lugar privilegiado de experimentação de diferentes e novas concepções de racionalidade. Mesmo porque, entre a megera cartesiana e a salomé niestzschiana, há mais coisas do que o nosso vão esquematismo dualista. Há toda a história deste século que, se não evitou prenúncios apocalípticos e tantas recaídas na barbárie, pelo menos tem tudo para deixar de ser -como disse o mesmo Joyce por meio de um personagem- aquele pesadelo do qual tentamos nos libertar.

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