São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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Um leitor do romantismo brasileiro

RONALD POLITO

É bem oportuna a publicação do alentado volume "Letras de Minas e Outros Ensaios", de Hélio Lopes, professor durante muitos anos de literatura brasileira do Departamento de Letras da USP. Oportuna como justa homenagem a um dos intérpretes do nosso passado literário que, praticamente, nunca viu suas obras prestigiadas por um público mais amplo. Oportuna ainda porque se insere num movimento, nítido atualmente, de retomada, em bases distintas, dos estudos das "belas-letras" do período colonial, no qual se inserem, dentre outros, "A Sátira e o Engenho", de João A. Hansen, e "Teatro do Sacramento", de Alcir Pécora, que já começam a produzir os primeiros efeitos. Por fim, é bem vindo este livro porque revisita diversos temas do romantismo brasileiro, em estudos que irão colaborar, com certeza, para a reavaliação desta fase de nossa literatura, hoje pouco estudada.
O volume, com organização e apresentação de Alfredo Bosi, reúne 53 textos escritos para fins variados e que cobrem um longo período de tempo, mesmo que não tenhamos a data de escrita da maioria deles. O texto com data mais antiga intitula-se "Gonçalves Dias", uma homenagem de Lopes pronunciada na Câmara Municipal de São Paulo, em novembro de 1964, em comemoração ao centenário da morte do poeta. Com data mais recente, o texto "Jorge de Lima: Para os 30 Anos de Sua Morte", de 1983. Dos textos datados, a maioria foi publicada em 1977 e 1978 no jornal "O Estado de S. Paulo". Dos 53 textos, quase todos são artigos breves, geralmente densos. Apenas o estudo inicial é mais longo, intitulado "Origens das Letras em Minas Gerais (1690-1768)".
O volume foi dividido em cinco partes. Não se percebe muito bem a razão que levou o organizador a compor a parte um apenas com o longo estudo acima citado. Talvez em decorrência de sua extensão ele não foi reunido à parte dois, titulada "Cláudio e a Arcádia Mineira", que continua abordando as manifestações literárias em Minas Gerais. Na parte três, "Temas Românticos", a maior do livro, estão os artigos que Lopes dedicou ao movimento romântico no Brasil. Na parte quatro, "Leituras de Poemas", nove textos sobre poemas específicos, certamente material de que o autor se utilizava em suas aulas ou que foi gerado a partir delas, como anota Bosi. Por fim, a parte cinco traz o estudo "A Oratória Sacra no Brasil".
Como se vê, o título do volume privilegia os estudos sobre a literatura em Minas Gerais, mesmo que não sejam sua maior parte, pela evidente superioridade destes trabalhos no conjunto, tanto mais tendo em conta que Lopes foi um dos raros estudiosos com autoridade para falar sobre nosso arcadismo literário.
Sendo impossível abordar um leque tão amplo de temas, importa chamar a atenção para três agrupamentos de melhor realização. Em primeiro, porque mais importantes, os estudos sobre Cláudio Manuel da Costa, o poeta talvez menos estudado do período colonial, cuja obra nada fica a dever às atribuídas a Gregório de Matos ou Tomás Gonzaga. Sendo autor extremamente complexo e requintado, explica-se a pobreza de sua fortuna crítica, que se reduz a menos de meia dúzia de textos realmente importantes, dentre os quais se destaca sobremaneira o trabalho inconcluso de Sérgio Buarque publicado nos "Capítulos de Literatura Colonial" e duas outras obras do próprio Lopes: "Cláudio: o Lírico de Nise" (1975) e "Introdução ao Poema Vila Rica" (1985), sua tese de livre-docência. Mas não há, ainda, um estudo "definitivo" sobre o conjunto dos textos de Cláudio Manuel, dada a incompletude do ensaio de Sérgio Buarque e a especificidade dos objetivos de Lopes em suas duas obras, ainda que ele tenha retirado do limbo o poema "Vila Rica", sempre tão incompreendido por seus escassos intérpretes.
O próprio fato, contudo, de Lopes ter se dedicado centralmente ao estudo da obra de Cláudio Manuel explica, em parte, sua pouca ou nenhuma repercussão. Mas explica, também, a edição do presente livro, num contexto em que os juízos sobre a literatura na colônia sofrem aguda mudança. Assim, seus trabalhos talvez passem a ocupar um primeiro plano. O conjunto de artigos dedicados a Cláudio Manuel é surpreendente, pois lança luz sobre facetas de sua obra até hoje não avaliadas, como as referências do poeta a Ovídio e Lucano. Mas não apenas: mencione-se os detalhados estudos dos criptônimos de Cláudio ou a inteligente análise de seu duvidoso suicídio, que coincide, por exemplo, com deduções presentes em Kenneth Maxwell, no clássico "A Devassa da Devassa", que Lopes, ao que parece, desconhecia.
O texto mais instigante, no entanto, "Para os Anos de Glauceste", por ironia, foi um dos poucos sobre o poeta que permaneceu inédito. Escrito em 1979 (250 anos do nascimento de Cláudio), o autor realiza a primeira incursão mais acurada sobre o pseudônimo Glauceste Satúrnio, desembocando numa análise, mesmo que inicial, sobre Saturno e a melancolia. Estes trabalhos indicam, no entanto, certa incoerência teórica de Lopes, por um lado caudatário das concepções românticas da literatura, por outro atento para alguns dos problemas da preceptiva retórica, básica para a avaliação desta literatura. Isto faz com que, volta e meia, o fantasma biográfico de Cláudio compareça justificando suas opções poéticas, ainda que em outros momentos se afirme precisamente a impropriedade deste tipo de conexão.
Um segundo agrupamento seria o dedicado ao romantismo. Haveria muito a notar, como seus saborosos artigos a respeito da ópera no Brasil do século 19, particularmente na obra de Alencar. Aqui importa reter dois outros temas: em primeiro lugar, os mapeamentos exímios de literatura comparada sobre as relações entre o romantismo brasileiro e os romantismos norte-americano, do norte da Europa e alemão, como nos textos "Norte-Americanos em Nosso Romantismo", "A Presença Nórdica no Romantismo Brasileiro", "Fausto e Werther" e "O Fausto Português", dentre outros.
Como se vê, o autor privilegiou o que continua ainda pouco conhecido, já que, em suas palavras, "as contribuições inglesa e francesa são por demais declaradas, sabidas e repetidas". Em segundo -e Lopes por certo não previa que hoje poderia estar situado em setores que se consideram "de ponta" nos estudos literários e históricos-, os artigos sobre literatos ditos "menores" do romantismo. O cuidado e o respeito com as obras desses pequenos autores é mais que uma bela lição de abertura de espírito, resgatando, como diz Bosi, a novela histórica "O Capitão Silvestre e Frei Veloso ou A Plantação de Café no Rio de Janeiro", de Luís da Silva Alvez de Azambuja Susano, de interesse para a história social e das idéias no Brasil. Ou ainda o "Romancista de São Roque", Antônio Joaquim da Rosa, possivelmente um dos primeiros no Brasil a escrever novelas de terror, que publicou, entre 1848 e 1851, "A Feiticeira", "A Assassina" e "A Cruz de Cedro", segundo Lopes, "um manancial ainda não explorado para o estudo dos usos e costumes da terra paulista".
O terceiro grupo se constitui dos estudos a respeito da oratória sacra no Brasil. Nele está não apenas a parte cinco do livro, já citada, como ainda oito artigos da parte três, todos sobre Monte Alverne. Novamente Lopes se revela um especialista cuidadoso em área pouco frequentada e secundária em termos literários, privilegiando oradores sacros do século 17 menos estudados, como o jesuíta Simão de Vasconcelos, o pregador popular frei Antônio do Rosário ou ainda frei Antônio das Chagas, possível opositor do padre Vieira, e Antônio da Silva, este último relegado a quase total esquecimento.
O exame da oratória sacra de Monte Alverne, de outra parte, permite reconstituir em detalhes a longa linha de desenvolvimento do sermonário colonial adentrando pelo século 19 e os deslocamentos operados na mesma, talvez em direção à oratória parlamentar, cada vez mais prestigiada a partir da independência. Destaque-se neste conjunto o inusitado artigo "Púlpito e Ribalta", que avalia as relações entre os procedimentos de pregação de Monte Alverne e seu interesse pela representação teatral, então em alta com a vinda da Corte para o Brasil.
Ainda que os textos de Hélio Lopes não possuam densidade teórica, eles comportam, contudo, aquela generosidade intelectual e uma abertura ao diálogo incomuns no panorama da crítica. Salta aos olhos, nesse sentido, a enorme quantidade de idéias, problemas, hipóteses e pistas que o autor deixa ao longo dos textos, e que ensejam pesquisas singulares. Torna-se, assim, obra de referência indispensável para os estudos literários, mas não apenas, no país.

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