São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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O que é, o que é?

DANIEL AARÃO R. FILHO

Ninguém mais propõe charadas, nem existem mais salões, porém esta resenha poderia começar com uma charada de salão: o que é, o que é, na história do Brasil, o que, em certo momento, reuniu na mesma aversão, os banqueiros, os cardeais, os generais e os dirigentes comunistas? O que é, o que é, o que, de toda esta gente, foi (anti) denominador comum?
Pistas para decifrar o enigma: nascido nas alturas, em berço de ouro, teve uma primeira infância meio enjeitada, mas cresceu forte e taludo, embora na lama, como os caranguejos, e tão robusto, que passou a merecer a suspeita e o ódio das pessoas de bem. Reuniu um pouco de tudo desta misturada nação: lideranças sindicais, políticos reformadores bem intencionados, aventureiros sem eira nem beira, lideranças carismáticas, patifes consumados. Os liberais o detestavam: não prezava a democracia, mas era bom de voto. Os comunistas o abominavam: não falava em revolução, mas tinha os ouvidos e, pior, o coração, das "massas". Quando se propôs a mudar o país, foi longe demais. Teve o tapete puxado. Os líderes, caçados e cassados. O programa, desterrado. As organizações, fechadas. Perdeu até o nome.
Mas não ficou anônimo. Respeitáveis professores o rebatizaram. Mais um insulto do que propriamente um nome: "populismo". Antes uma senha do que um conceito. Todas as taras da política brasileira seriam associadas ao maldito termo. Corrupção, peleguismo, fisiologismo, falta de escrúpulos e de princípios, demagogia barata, truculência. Homens sem princípios, lideranças maquiavélicas, pessoas simples, mas inconscientes, manipuladas, desviadas. Desta estranha combinação emergiu um bicho horrendo, mal-formado, precisava mesmo ser morto.
"Populismo". O nome afirmou-se com a força tranquila das propostas hegemônicas. Depois de seu colapso, em 1964, divulgaram-no com igual fervor a direita e a esquerda. Ordens do dia, compêndios, organizações revolucionárias. Como os rinocerontes de Ionesco, todos repetiam em coro: "populismo". Já ninguém se lembrava exatamente de como e onde tinha surgido, com que motivações e objetivos, aquela história de um nome que se expõe tanto, e se (auto)ilumina de tal maneira, e serve a tantos interesses, que acaba se substituindo à coisa, ou ao processo, que nomeia, dispensando pesquisas, eliminando controvérsias. Virou lugar comum, uma banalidade.
Entretanto, surgiram dissonâncias, caminhos alternativos. Angela Castro Gomes abriu uma vereda (em "A Invenção do Trabalhismo", Vértice, 1988). Começou pelo começo: por que rebatizar um movimento que já tinha nome? Não ajudaria, talvez, à compreensão do fenômeno, chamá-lo pelo próprio nome de origem: "trabalhismo"? Quando esta tradição foi inventada? Por quem? De que maneira os trabalhadores do Brasil reagiram à proposta? Como participaram? Nesta construção, embora não faltassem candidatos a Maquiavel, eles já não eram absolutos. Quanto aos trabalhadores, ainda que subordinados, deixavam de ser inconscientes e "desviados", para assumir um lugar na própria história.
Formou-se uma perspectiva revisionista. Jorge Ferreira a assume com rigor e método. Pesquisou arquivos ainda não visitados, os da Secretaria da Presidência da República, no Arquivo Nacional: 2.483 caixas, 20 códices, cobrindo o período de 1930 a 1965. E descobriu lá, sobretudo entre 1930 e 1945, abundante correspondência dirigida ao Exmo. Sr. Presidente da República. São Nemésios, de Bodocó, Virgílios, de Juiz de Fora, Ameridas, de Diamantina, Josés, de Jaboatão, Eduardos, de Salvador, milhares e milhares de cartas de pessoas comuns, com sugestões, solicitações, críticas, propostas, exigências, lamentações, choros, imprecações.
Para trabalhar esta espécie de "cahiers de doléances", Jorge Ferreira apoiou-se em claras referências, entre outras, a da permanente autoconstrução das classes sociais (E.P. Thompson), as noções de apropriação dos discursos dominantes pelos dominados (R. Chartier) e de circularidade cultural (C. Guinzburg), a idéia de que não existem folhas de papel em branco na sociedade (P. Burke), as estruturas de escolha (A. Przeworski), as tradições de luta por justiça e dignidade (B. Moore), o papel não decisivo das operações de manipulação, violentas ou persuasivas, na modelagem das consciências humanas.
E formulou quatro estudos primorosos sobre a cultura política dos trabalhadores urbanos e rurais e sobre as relações entre o poder, a burocracia estatal e as resistências políticas durante o primeiro governo Vargas.
De seu texto emergem trabalhadores que analisam, a seu modo, o processo social e político da época, conscientes de seus interesses, e medem e calculam, e traçam estratégias para alcançá-los. Apreciam o ditador e sua obra. Reclamam a presença do Estado mas não parecem ferramentas manipuláveis, nem são bobos da corte. Por outro lado, e não menos importante, o Estado truculento não é todo poderoso, nem monolítico ou totalitário, e mesmo seu aparelho carcerário tem fissuras por onde germina e se organiza a resistência.
Os liberais precisam ler este livro: talvez compreendam melhor por que, em certa conjuntura da nossa história, os trabalhadores não amavam a democracia. E os comunistas também tirariam bom proveito: para entender por que nossas classes perigosas não foram tão perigosas assim e acabaram desrespeitando as leis da história.

Daniel Aarão Reis Filho é professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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