São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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Urgência da felicidade

FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

A reflexão que deseja gravar suas marcas no bloco do tempo petrificado que a indigência do presente oferece como nossa história deve servir-se da mais delicada força aliada ao maior apuro do cinzel. Pois a amplitude dos temas não abre largos corredores ao pensamento; antes, é por veios estreitos e sinuosos, por desvios e retornos que se elabora a compreensão e se constroem os juízos acerca do legado e das possibilidades da filosofia. O livro de Jeanne-Marie Gagnebin nos comunica algo daquela precisão que somente se consegue quando o desprendimento se torna requisito da ambição: quando os limites da pretensão teórica asseguram a clareza e a profundidade dos objetivos atingidos.
A dificuldade deste equilíbrio já se apresenta no enunciado do título: linguagem, memória e história, temas aos quais se subordinam textos produzidos em circunstâncias várias, e reunidos a partir de uma qualidade comum, que a autora denomina de "pedagógica".
Se pelo termo se entende o convite ao pensamento autônomo, estimulado por exercícios de reflexão que procuram reatar em diversos níveis os vínculos entre a tradição e o presente, então nada há a objetar quanto à pertinência da designação. Essas "sete aulas" não são apenas a transmissão de informações acerca dos assuntos tratados, mas discussões em que muitas vezes a reserva acadêmica e a prudência professoral são largamente ultrapassadas por um profundo compromisso com a interpretação, do qual não está, portanto, ausente, o belo e necessário risco do encontro do pensamento com as perplexidades e as aporias inerentes ao seu próprio movimento.
Estas observações iniciais são necessárias não apenas a título de preliminares de praxe, mas para que se possa compreender o alcance e a inter-relação dos assuntos que constituem a coletânea. Que a história como realização humana do anseio de imortalidade encontre seu testemunho inicial na emoção fundadora de Tucídedes, episódio desde logo revelador da tensão entre a objetividade e o compromisso do narrador dos feitos e das palavras dos homens, não representa apenas mais uma consideração do problema do nascimento da história. Da maneira como a autora a reconstitui, a questão se projeta na crítica da neutralidade apaziguadora que Benjamin denunciará como a saga burguesa de um processo histórico impersonalizado, esvaziamento axiológico da vida histórica e objetivação reificadora da realidade humana. Se a memória é o lugar em que se preserva o valor imortal das ações humanas, o único critério possível de julgamento é a singularidade dos acontecimentos pelos quais os homens continuamente se reinventam no tempo.
E por ser o tempo humano o "medium" das aventuras e desventuras históricas, é preciso examinar o valor de sua interiorização em Santo Agostinho, que liberta o tempo da fatalidade cíclica do devir cósmico, tornando-o movimento da alma e instaurando desta maneira a eternidade da temporalidade linear, transcendência em que se projeta agora a esperança humana de imortalidade. Da memória como repositório de exemplos à memória como movimento de constituição da temporalidade, o trajeto de interiorização aponta para a autonomia do espírito, que ensaia seu domínio até mesmo sobre a marca mais característica da finitude: a temporalidade.
Este ensaio de compreensão racional do tempo, que resultava ainda na sua subordinação à eternidade da qual ele deveria ser a figura, antecipa de alguma maneira a separação entre a consciência e o mundo natural. Esta separação, entendida como libertação, tarefa da razão esclarecida, é tematizada no texto sobre o conceito de razão em Adorno, em que a autora acompanha criticamente, mediante uma inteligente montagem de textos das diversas fases do pensamento adorniano, a radicalidade de uma reflexão que desmistifica a positividade da autonomia e separa definitivamente a racionalidade da esperança de felicidade. A realização do projeto da modernidade como movimento contraditório de emancipação e servidão enseja uma bela análise do significado da esperança, que deixou o convívio dos homens a partir do momento em que o processo objetivo da história substituiu a singularidade da liberdade vivida, que os gregos enalteciam nos seus heróis e nos seus cidadãos.
Há portanto uma relação intrínseca entre esperança e verdade: no ensaio sobre o sentido da presença dos anjos nos textos de W. Benjamin, Gagnebin enfatiza o esforço para dissociar do conceito de verdade a substancialização que o objetivismo historicista confere àquilo que deveria ser compreendido como o drama humano. O único absoluto com que o homem pode contar é a atualidade do acontecimento: a incidência efêmera do evento singular no movimento da história se reveste de uma gravidade somente comparável à dos anjos anunciadores, resplandecentes de beleza e bondade, mas que desaparecem logo após terem entoado um hino a Deus. A propriedade com que tal evocação revela a profundidade extraordinariamente efêmera da ação histórica é ressaltada no texto, para mostrar os elos de ligação entre o duradouro e o transitório, sem cuja compreensão não é possível vivenciar o comprometimento histórico.
Pois é o efêmero que produz aquilo que deverá ser preservado na memória, assim como é a visão da beleza física na sua transitoriedade que se torna ocasião para elevar a alma à contemplação da verdadeira beleza. O texto sobre o "Fedro" assinala bem o componente erótico da verdade: desejar a Beleza naquele que é belo, aspirar à união eterna com o objeto de amor, resulta necessariamente no desejo da Verdade. Tal desejo se reveste de uma essencial ambiguidade: a palavra filosófica fixada na escrita é vestígio da experiência dialética e como tal enfraquece a força erótica do desejo da verdade. A grandeza específica do discurso humano não se situa propriamente no seu registro, mas na dinâmica reveladora do amor à verdade, necessariamente destinada a desaparecer. A memória é fator de imortalidade, mas, quando associada à atividade imortalizadora do poeta, do historiador e também do filósofo que escreve, revela que esta imortalidade é anseio nascido da fragilidade.
A comparação entre os textos sobre história e filosofia gregas e aqueles que examinam a posição crítica de Adorno e Benjamin nos encaminham, na leitura deste conjunto de trabalhos, para uma reflexão que talvez seja capaz de reunir em profundidade as diversas abordagens. Na Antiguidade, a angústia da morte fez nascer um desejo de imortalidade cuja realização dividiu-se entre a poesia, a história e a filosofia, cada uma buscando à sua maneira preservar para sempre o heroísmo, a ação e os pensamentos de um ser perturbado pela consciência da sua perecibilidade. Na modernidade, a angústia da perecibilidade, que Benjamin tão profundamente analisou na obra de Baudelaire, está irremediavelmente contaminada por algo como uma imortalidade mistificada: a idéia de progresso, pela qual o homem se lança infinitamente para além de si próprio. A totalização abstrata, ao roubar o lugar da individualidade singular de homens e eventos, não mais permite uma esperança individual -e a aspiração coletiva que somente se realiza nos confins da individualidade. A consciência da perda produz então um novo sentido de esperança, que sustenta a crítica e a negação do existente, mas que não se traduz numa expectativa de transformação efetiva, porque já não vemos, como os gregos, na transitoriedade a marca de uma grandeza especificamente humana, já que não vivemos livremente a nossa mortalidade.
Se esta conclusão pode seguir-se legitimamente às análises de Gagnebin, então o seu livro mostra que nunca foi mais necessário falar-se de esperança, de verdade e de amor. Precisamente porque vivenciamos na cultura anódina do presente as antíteses destas expectativas, o pensamento deve assumir, mais do que nunca, a tarefa de reavivar na memória dos homens a relatividade de todos os contravalores que eles mesmos criaram, para que se manifeste, ainda que no contexto de um pensamento desesperançado e de uma realidade esvaziada de conteúdo humano, o que a autora chama, reportando-se a Benjamin, de "urgência da felicidade".

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