São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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No terceiro aniversário do Plano Real

ROBERTO CAMPOS

O terceiro aniversário do Plano Real tem suscitado numerosos debates sobre seu impacto econômico. Pouco se tem dito sobre seus reflexos "políticos" e "culturais".
No plano "político", ao ensejar a eleição de FHC, abriu-nos uma alternativa modernizante ao dirigismo esquerdista de Lula, que, opondo-se às reformas, tornou-se um "neoconservador". Conquanto FHC seja apenas um pós-marxista, e não um liberal, e conquanto o Brasil atual esteja longe de se tornar um modelo de liberalismo, a verdade é que estamos saindo do mercantilismo patrimonialista para uma economia de mercado. Ainda que relutantemente, aceitamos a inevitabilidade da globalização competitiva.
Se tivesse sido vitorioso o dirigismo esquerdista do PT, é improvável que se priorizasse o redimensionamento do Estado, que fossem abolidos os monopólios estatais e que tivéssemos avançado nas privatizações. A abertura internacional teria sido interrompida. E estaríamos enfeudados ao "Estado babá", bonzinho e balofo...
Houve paralelamente uma revolução "cultural". No plano psicológico, aprendemos que não estávamos condenados à inflação por uma fatalidade atávica. Trata-se de uma doença curável por um gerenciamento macroeconômico minimamente racional.
Como preparação para o lançamento do Real, fizemos um esforço de equilíbrio fiscal e de renegociação da dívida externa. O objetivo fiscal foi apenas precariamente atingido em 1994 (deteriorando-se a situação em 95/96), mas o reescalonamento da dívida tornou-se um aprendizado sobre a identificação dos inimigos. A incapacidade de distinguir verdadeiros de falsos inimigos é um dos fatais vícios do subdesenvolvimento.
Reestruturada a dívida externa em 30 anos, a juros razoáveis, descobrimos que nossos verdadeiros inimigos são internos. É a despoupança do governo que gera o déficit público, que resulta na emissão de títulos, que têm que ser rolados com prazos curtos e juros altos.
Se continuarmos emaranhados num círculo vicioso de baixo crescimento, não é por causa de forças ocultas e abstratas, como o capitalismo, o imperialismo, o liberalismo ou a globalização. As causas são muito mais corriqueiras e se situam na desordem dos vários níveis estatais.
A despoupança do setor público resulta em altos juros, que asfixiam o setor privado e repercutem nas contas externas, impedindo-nos de passar do "círculo vicioso" para o "círculo virtuoso". Nesse, a expansão do setor privado geraria impostos que robusteceriam os investimentos públicos em infra-estrutura, deflagrando uma espiral de crescimento.
Dentre os nossos líderes esquerdistas, Lula continua falando na "opressão dos credores", e Brizola, nas "perdas internacionais" infligidas pelas multinacionais.
Esquecem-se de que, por meio das privatizações, credores implacáveis podem ser transformados em sócios complacentes. E, num mundo globalizado, em que as multinacionais são correntes de transmissão de poupança, organização e tecnologia, quando Brizola fala das "perdas", tenho a impressão de que se refere ao extravio de sua bagagem no aeroporto de Miami. Lamentável, porém irrelevante...
Houve um outro "avanço cultural" no Plano Real. A explosão do consumo popular após a estabilização de preços revelou algo que estava oculto sob a poeira cósmica da inflação. Ela é um tributo arbitrário e injusto, que castigava particularmente os pobres.
Infelizmente, generalizou-se a convicção de que o controle da inflação é o primeiro capítulo, quer na melhoria da redistribuição de renda, quer na retomada do crescimento.
Mas ainda há muito que aprender. As grandes massas continuam dando a "sanção da vítima" a instituições que se prejudicam. A Previdência Social pública e compulsória tornou-se um instrumento de espoliação do pobre.
Entretanto várias pesquisas revelam resistência popular à privatização da Previdência, numa espécie de triunfo da esperança sobre a experiência. As estatais chamadas "rentáveis" espoliam o Tesouro, remunerando o capital do contribuinte a menos de 1% ao ano. Entretanto, no imaginário popular, aceita-se a fantasia de que sejam "patrióticas" e "estratégicas".
Alguns sindicatos, como os da CUT, são cada vez menos de operários e cada vez mais de funcionários. Quanto mais belicosos na preservação das chamadas "conquistas" dos empregados, mais gente empurram para a economia informal, e mais gente se torna "inempregável". Quando for escrita a história do ABC paulista, hoje ameaçado de desindustrialização, verificar-se-á que a CUT entorpeceu a geração de empregos e se tornou algoz dos desempregados.
Talvez se possa concluir que, paradoxalmente, os resultados econômicos do Plano Real sejam menores que seus benefícios políticos e culturais.
Em termos econômicos, foi um sucesso provisório, ainda não consolidado. A inflação de 7% por semana passou para 7% ao ano. Mas, relativizadas as coisas, verifica-se que nossa inflação é mais do que o dobro da prevalecente no Primeiro Mundo. E remanescem sérias vulnerabilidades.
No plano fiscal, persiste um grave déficit no setor público, que tem de ser curado por terapias múltiplas: reformas estruturais, contenção de gastos e privatizações. E ressurge um constrangimento externo, que parecia superado: o déficit na conta corrente da balança de pagamentos, estimado para este ano entre 4% e 4,5% do PIB.
Déficits dessa natureza não têm impedido o crescimento do sudeste asiático, mas a tolerância dos capitais internacionais em relação à América Latina é muito menor.
É o preço que pagamos por calotes e moratórias do passado. Daí resulta que o limite prudencial na América Latina se situe em torno de 3% do PIB. Nosso déficit externo também exige terapia múltipla: reformas estruturais para a redução do "custo Brasil", deslizamento suave das bandas cambiais e aceleração das privatizações.
O caso brasileiro apresenta, aliás, um paradoxo. As bolsas continuam dinâmicas e atraentes para investidores estrangeiros, revelando que é percebido o "potencial" do país. Mas, na avaliação do risco de crédito, temos que pagar altos juros internacionais, superiores aos do Chile, Tunísia, Filipinas, Índia, Colômbia, México e Argentina.
Nos 14 degraus de credibilidade decrescente do Índice Standard & Poor's de Nova York, estamos em 12º lugar, em paralelo com o Paraguai, Cazaquistão, Líbano, Jordânia, Romênia e Rússia.
É que as Bolsas estimam as perspectivas futuras enquanto que os "ratings" registram as safadezas do passado. Estamos tão impregnados da cultura do "calote" que economistas respeitáveis consideram escandaloso resgatarmos apólices vinculadas a obras de alguns presidentes da República Velha. "Papagaios" velhos deixam de ser dívida...
Obsessivamente anticaloteiro, o ministro Octávio Gouveia de Bulhões, em 1967, resgatou-as pela conversão em ORTNs. Numerosos portadores desinformados, entretanto, tiveram suas apólices eletrocutadas pelo "encurtamento ilegal" do prazo de prescrição do Código Civil.
Uma reparação possível aos "caloteados" seria a emissão de Notas do Tesouro, de longo prazo, utilizáveis (seletiva e escalonadamente) apenas para programas de privatização. Isso evitaria desencaixe e preveniria sentenças judiciais potencialmente onerosas.
Na avaliação da credibilidade externa do país, influem fatores complexos, desconectados e às vezes aparentemente irrelevantes.
Por exemplo, a recusa do Brasil em aderir ao Acordo de Cingapura, que visa a completa liberalização do comércio de tecnologia de informática até o ano 2000 e ao qual já aderiram países que representam 92% do comércio mundial de alta tecnologia, constitui uma sinalização negativa. Indica à comunidade internacional que o Brasil ainda não avaliou corretamente o enorme atraso que lhe impôs a política de nacionalismo informático.
Essa hesitação em aderirmos ao liberalismo tecnológico diminuirá nossa atratividade para novos investidores em microeletrônica e informática, que exigem barato, rápido e livre intercâmbio de peças e componentes. Terá consequências mais graves que nossos 29 anos de atraso na aceitação do TNP (Tratado sobre a Não-Proliferação de Armas Nucleares), que suscitou suspicácia internacional sem energizar nossa pesquisa nuclear pacífica.
Resíduos da cultura do calote e da paranóia nacionalista continuam sendo obstáculos à retomada do crescimento brasileiro, apesar do progresso político e cultural trazido pelo Plano Real.

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