São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Os crimes socialmente justificáveis

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Deu no jornal. Um pastor da Igreja Anglicana declarou na Inglaterra que o furto de bens nos supermercados não constitui crime e menos ainda pecado, mas um expediente recomendável de justiça social para se chegar a uma melhor distribuição de riqueza.
A notícia se associa a um episódio ocorrido há uns 20 anos, quando recebi a visita de um jovem acadêmico carioca. Era um desses dias úmidos de junho, de céu cinzento e friozinho estimulante, cujo encanto a poluição e outras mazelas começavam a quebrar. O visitante chegara se queixando, como sempre fazia quando vinha a São Paulo. Na sua sensibilidade, o friozinho se transformava em um inverno siberiano. Além disso, detestava a garoa, o trânsito, o trato difícil com as pessoas. Em suma, desfiava algumas críticas verdadeiras e alguns estereótipos sobre a cidade e o temperamento dos paulistanos, por nascimento ou adoção.
Apesar dessas críticas, o jovem acadêmico vislumbrara uma oportunidade de ser contratado por um dos departamentos de ciências humanas da USP e queria aproveitá-la. Como eu era um de seus interlocutores confiáveis, veio me pedir um atestado de qualidades morais e intelectuais, em que o signatário enumera verdades e chavões em dosagem equilibrada.
Entramos no meu escritório e os olhos do visitante foram imantados pela minha estante de livros. Mirou aqui, mirou ali, folheou alguma coisa; afinal, parou diante de um volume, perguntando com ar meio distante, como quem quer, mas não faz questão: "Você me empresta este?".
Se tiver de escolher entre emprestar a escova de dentes ou os livros, opto francamente pela primeira hipótese. A razão da resistência é generalizada e mais do que conhecida. No meu caso, basta olhar os livros dormindo na estante, que não me pertencem, mas cuja propriedade desconheço. Como ainda hesito em violar o sacrossanto direito, eles ficam meio à margem, em quarentena, à espera de que um improvável proprietário venha reclamá-los.
Foi fácil negar o pedido de empréstimo. O livro era de meu irmão que, tendo viajado para uma longa permanência na Europa, deixara parte de sua biblioteca em minha casa. Se em princípio não gosto de emprestar livros, tinha ainda menos propensão a converter-me em depositário infiel.
No dia seguinte, percorrendo com os olhos a estante, como um oficial que inspeciona as fileiras de sua tropa, dei com uma anormalidade. Um volume se inclinara para a direita, acomodando-se sem cerimônia no volume vizinho. Para que isso fosse possível, teria de haver entre os dois uma falha, tanto mais estranha quanto, por falta de espaço, os livros eram obrigados a conviver grudados uns nos outros. Logo percebi que a falha resultava do sumiço de um livro e, embora me custasse a crer, daquele pelo qual o visitante manifestara interesse.
Era elementar definir a responsabilidade pelo ocorrido. Mas um dado me intrigava. Me lembrava bem de que o rapaz, à saída de casa, me estendera a mão gelada e se fora com as duas abanando. Onde teria enfiado o produto do surrupio? Aí percebi que o inverno paulistano, tão criticado pelo moço, na realidade se aliara a ele. Enquanto eu tecia loas à sua probidade, a seu talento promissor, ele enfiara o volume por dentro de um pulôver folgado que envergava, levando-o para paragens mais cálidas.
Mas o que esta história tem a ver com as afirmações do pastor anglicano? Muita coisa. Elas me fizeram lembrar o episódio mais ou menos esquecido e compreender o que na época tinha sido difícil aceitar. O ato do jovem acadêmico não fora apenas banal como, mais ainda, plenamente justificável. Suponho que o pastor se referia a alimentos quando nobilitou o furto nos supermercados. Não é de se imaginar que estivesse incentivando o consumismo, defendendo a subtração de videocassetes ou televisores. A partir daí, a analogia tornou-se evidente: o jovem acadêmico não cometera um delito, mesmo corriqueiro, mas praticara um gesto socialmente relevante, contribuindo para a melhor distribuição desses pães do espírito que são os livros.
Ao rememorar a cena de 20 anos atrás, percebi também que ficara incomodado por sentir que fizera papel de bobo, com a minha declaração abonadora. Hoje, acho até graça na ligeireza do visitante, mas, ao mesmo tempo, vejo como foi lamentável a perda do livro. Quem sabe, se tivesse feito a leitura "feuerbachiana" da "Essência do Cristianismo", teria entendido em toda sua extensão as sábias palavras do bom pastor anglicano?

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