São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Primazias da democracia

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pode parecer paradoxal que o organizador de uma série de eventos sobre os direitos humanos, que este ano mobiliza a antena da USP na rua Maria Antônia, levante esta questão, mas não há como evitá-la: os direitos humanos não ameaçarão, hoje em dia, a própria democracia?
É verdade que o principal aporte positivo da modernidade à idéia de democracia está nos direitos humanos, que os gregos ignoraram. Mas hoje o risco é confundir a democracia, que etimologicamente é "poder do povo", com um elenco de direitos que cada indivíduo teria, a ele devidos por uma entidade abstrata e malfalada, que seria o Estado.
Exemplo claro dessa concepção equivocada está na frase que os ônibus paulistanos já ostentaram: "Transporte, direito do cidadão, dever do Estado". Correto, se indica que o poder público deve prestar contas aos cidadãos em matéria social. Mas nem tanto se sugere que o Estado seria independente dos cidadãos, um ente escapando a eles por todos os poros. Perde-se, com isso, a idéia-chave da democracia, segundo a qual o Estado é ou deve ser criação dos cidadãos, e, em última análise, tudo o que ele faz ou deixa de fazer é responsabilidade deles.
A causa desse erro é medir os direitos humanos pelos direitos privados. Ora, estes últimos se oferecem ao indivíduo como possibilidades que é indiferente usar num sentido ou noutro, ou mesmo não usar. Se tenho o direito de expressão, posso dizer uma coisa ou outra -ou calar-me. A maior parte dos direitos privados são, assim, direitos no sentido em que posso me dispensar de usá-los, digamos, de maneira "positiva": ter o direito de guiar um carro significa que não sou obrigado a guiar.
O problema é que essa idéia do direito como parte do patrimônio individual perde de vista a essência dos direitos políticos, que se ligam à democracia enquanto poder do povo -isto é, como um poder constantemente criado pelo povo, cujo mérito e custo reside justamente no fato de nunca se completar e que, por isso, jamais dá aos cidadãos o falso sossego dos regimes autoritários, o ilusório conforto de ter seus negócios decididos por outrem.
Na democracia os assuntos de todos são, ou devem ser, decididos por todos. Portanto, nela os direitos políticos têm que ser também deveres, obrigações. Um cidadão não pode mostrar, pela coisa pública ou democrática, a indiferença que pode ter por seus outros direitos. A democracia morre se os cidadãos renunciam a participar da constituição, ininterrupta, do poder comum.
No Brasil, esse debate às vezes se anima devido ao voto obrigatório -que também existe na Bélgica, Itália, Austrália, Costa Rica. Parte da opinião pública e da imprensa brasileira quer suprimi-lo, alegando que, se temos o direito de votar, segue-se que devemos ser livres para não votar. Não discutiremos aqui os aspectos sociológicos dessa questão. Mas, ficando só no plano filosófico, esse argumento esquece a idéia-chave pela qual os direitos que constroem a coisa comum são, também, deveres.
Ocorre essa mesma redução do político ao privado quando se cita entre os direitos humanos o de votar. Ora, se temos razão, o direito de votar e, de modo geral, o de participação política estão num plano superior aos dos direitos humanos, por serem constitutivos do único regime no qual a liberdade e a responsabilidade aparecem como direito/deveres universais.
É claro que esta tese tem pelo menos uma dificuldade. Os direitos humanos não são votados, mas declarados. Não devem sua legalidade à vontade política de uma assembléia, mas são os primeiros dos direitos, "naturais", diríamos, para usar a linguagem dos filósofos dos séculos 17 e 18. Por isso, tanto a constituinte francesa de 1789 quanto a assembléia da ONU, em 1948, editaram declarações dos direitos, e não algum tipo de lei.
Isso faz pensar, mais ou menos na linha do pensador franco-suíço Benjamin Constant, que hoje a questão do governo fica secundária perante a dos direitos do indivíduo. Se os direitos humanos são naturais, e o regime político é só uma convenção entre os homens, como poderá este ter prioridade sobre aqueles?
Só podemos responder a essa objeção mediante uma nova tese: somente é legítimo, na política, o regime democrático. A democracia não pode mais ser pensada como outrora, enquanto um regime político duvidoso, paraíso dos demagogos: ela é o único regime no qual todos são considerados, como queria Kant ("O Que É o Iluminismo"), adultos e, portanto, iguais perante a lei. Todo outro governo supõe, não apenas a desigualdade de direitos, mas, o que é mais grave, que parte dos adultos sejam infantilizados e mesmo puerilizados, decaindo de cidadãos a súditos, tutelados por pretensos superiores seus.
Este valor ético da democracia faz com que os direitos que a constituem tenham primazia sobre todos os outros direitos possíveis do homem. Aliás, nosso tempo mostra que tais direitos somente são assegurados quanto há o núcleo duro dos direitos democráticos. Daí dizermos que os direitos humanos, em geral, não são apenas garantidos pelas relações legais democráticas, mas que derivam delas, e que o direito/dever constitutivo da democracia é extremamente fecundo, na medida em que gera os direitos humanos.
Enfim: se a democracia tem valor ético, ou é um valor, isso traz duas consequências. Primeira: não se pode dizê-la um simples meio, por melhor que seja, para a resolução de conflitos; mesmo que ela o seja, não é esta a sua essência, mas só um papel derivado de seu valor ético.
Segunda: a própria democracia não é apenas um regime político. Se é um valor, deve aplicar-se, idealmente, a todas as relações sociais e não só ao Estado e a suas instituições. Aqui, digamos apenas que deverá fecundar tanto a vida privada, como espaço dos afetos que urge democratizar (amizade, amor, família), quanto as relações de trabalho, hoje dominadas pelo capital.
Mas o eixo de tudo isso é o poder do povo. Se não ficar bem claro que não há direitos humanos sem esse poder, poderemos evitar a ilusão de uma sociedade na qual os direitos humanos seriam respeitados, mas como atributos de indivíduos dissociados uns dos outros: ilusão, porque sem o empenho desses homens na construção do espaço comum, jamais haverá esses direitos. A cidadania não é um conjunto de vantagens, mas essa mescla de direitos e obrigações no face a face de todos.

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