São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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A tribo dos cientistas

ERASMO GARCIA MENDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dois cientistas sociais (Bruno Latour, antropólogo francês e Steve Woolgar, sociólogo inglês), propuseram-se a estudar, usando a metodologia e a análise de suas respectivas disciplinas, o que se passa dentro de um laboratório de pesquisa. O resultado foi o livro "Vida de Laboratório".
Mas, qual a "razão de uma etnografia de um laboratório de pesquisa"? A razão se deveria ao fato de antropólogos já terem estudado exaustivamente as tribos imagináveis, enquanto permanecem pouco cuidados os setores tecnológicos e científicos da sociedade humana dita civilizada.
Para conferir independência às análises da ciência, urge ir além do que os pesquisadores e descobridores dizem de si mesmos, torná-los o que os antropólogos chamam de "informantes". Foi assim que, com o nome de sociologia ou psicossociologia da ciência, desenvolveu-se a literatura sobre as instituições científicas, a concorrência entre pesquisadores, a evolução das disciplinas. Todavia, essa literatura não teria encarado a problemática antropológica levantada pelo livro, ou seja, a reunião entre o conteúdo científico e o contexto social, ainda que a produção do objeto científico possa ter sido abordada. Essa união foi a pretensão dos autores.
Para tanto, escolheram como "campo" de investigação, um laboratório extremamente conceituado, o Instituto Salk, em La Jolla (Sul da Califórnia), na ocasião engajado em importantes pesquisas endocrinológicas de cunho fisiológico e bioquímico. Seus cientistas, técnicos, funcionários administrativos foram os "informantes" dessa tribo "sui generis". Seus objetivos, ambições e motivações, dentro de cada posição funcional ocupada, foram investigados, integrando-se o "observador" na rotina do laboratório, às vezes até participando, algo canhestramente, da pesquisa.
Os resultados colhidos foram analisados em termos tanto da lógica da investigação como do seu significado social.
A dificuldade em apreciá-la na sua abrangência, entretanto, decorre da complexidade da questão abordada. Apenas uns poucos privilegiados, como Latour, por terem se inteirado dos objetivos do Instituto Salk e serem, por outro lado, cientistas sociais, poderão percorrer com tranquilidade as árduas 288 páginas do livro, com densos registros, análises e discussões da vida de um laboratório. Resta apenas pinçar, para destaque, alguns dos muitos tópicos de interesse.
A grande diferença entre a etnologia clássica e a das ciências está em que na primeira o cerne se confunde com o território e, na segunda, toma forma de uma rede (seja uma coligação de instituições até de vários países). Um laboratório ocupa-se de fatos, não de teorias.
O antropólogo despido de noções do que é pesquisa científica estará mergulhado em um universo aparentemente absurdo em um laboratório. Descrevê-lo requer conhecimento a respeito de certos aspectos da ciência, mas deve ter em mente que uma descrição da ciência com a terminologia dos cientistas pouco adiantará, devendo procurar um princípio organizador que forneça uma visão do laboratório significantemente diferente da do cientista, mas que interesse tanto a este como ao leigo.
Esse princípio organizador é a inscrição literária (no sentido de Derrida: operação anterior à escrita, servindo para resumir traços, pontos, tais como histogramas, registros, gráficos, aparelhos que produzem resultados sob forma escrita; não apenas os que transformam um estágio material e outro, mas matéria em escrita).
A noção de inscrição é sociológica, permite descrever as atividades de um laboratório, sem a preocupação com a diversidade do material e conduz à idéia de que ele é um sistema de inscrição literária. Essa importância atribuída ao documento contrasta com a tendência da sociologia da ciência de valorizar o papel das comunicações informais, que é importante apenas quando se dispõe de uma rede densa de contatos.
A comunicação formal é a referente aos artigos bem estruturados. A noção de inscrição literária cria problemas para o antropólogo, ainda que inteirado da cultura dos cientistas. Estes não acatam suas descrições e sua avaliação ao configurá-los como leitores e autores, cuja atividade é do tipo literário, pois admitem que escrevem sobre coisas.
Os pesquisadores falam em justaposição quando se referem a publicações externas, tornando-as uma espécie de santa escritura. A mitologia (no sentido de Barthes: quadro de referências em que se localizam as atividades e as práticas de uma cultura) pode fazer entender de que ela é feita.
Indagados sobre o que fazem os pesquisadores do Salk, dirão que é neuroendocrinologia, historiando a gênese, evolução e seu presente estado dessa disciplina.
No caso do Salk, a pesquisa analisada originou-se de um evento particular bem fundamentado: células nervosas também secretam hormônios. Visto que o relato mítico de como uma cultura se auto-representa não é desprovido de fundamento, o crescimento da neuroendocrinologia se ajustou ao esquema do desenvolvimento científico dos sociólogos.
Mas essa mitologia raramente é mencionada no laboratório, pois torna-se um resto distante e menor do passado, parte de uma tradição conhecida. Assim, após alguns dias, o "observador" pouco ouviu falar sobre a disciplina de que se ocupava o laboratório, versando as conversas sobre outros valores culturais.
É pena que não se possa abordar na sua integral essência as descrições e a minuciosa e arguta análise do desenvolvimento da investigação. Assim, assuntos como o que motiva pesquisadores a escrever artigos, ocupar posições, a importância do "curriculum vitae", a dinâmica do grupo (Cap. 5), e, principalmente, a questão de ordem a partir da desordem constituem leituras imperiosas.
Sobretudo esta última, que é abordada em termos de duas analogias da investigação científica com as metáforas do demônio de Maxwell (na versão de Brillouin e Singh) e do jogo de "go" (Kawabata) e, também, em termos do acaso e necessidade (Monod).
Como reagiram os pesquisadores do Salk à leitura de "A Vida de Laboratório"? Segundo os autores (rodapé da pág. 32), preferiram e se divertiram mais com o livro de N. Wade ("La Course au Nobel", 1981), provavelmente por estar menos sobrecarregado de comentários e análises feitas com base em obras de filósofos e sociólogos que se ocuparam de ciência (Foucault, Derrida, Bachelard, Bourdieu, Callon) ou teóricos da informação (Brillouin).

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