São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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O Senhor do Saara

MARTA AVANCINI
DE PARIS

Aos 21 anos, o zoólogo francês Théodore Monod descobriu que, além do Atlântico, havia outro oceano a estudar, um oceano de areia: o Saara.
Aos 95 anos, 74 dedicados à pesquisa, Monod ainda mantém o hábito de ir todos os anos ao deserto africano, que se tornou seu campo de estudos desde 1923, a primeira vez que foi ao continente, em uma expedição do Museu Nacional de História Natural da França, instituição à qual ainda é ligado.
Monod, que só este ano já foi duas vezes ao Saara, costuma caminhar pelo deserto em busca de peças, plantas e animais que atraiam sua curiosidade.
Por ter o hábito de caminhar com um martelo, que usa para fazer escavações geológicas, tornou-se conhecido entre as tribos de nômades saarianas como "o homem do martelo".
Uma de suas maiores contribuições científicas ocorreu quando ele tinha apenas 25 anos: o homem de Asselar, que acredita-se ser o mais antigo esqueleto de um negro já encontrado.
Monod é um cientista à moda antiga, um naturalista preocupado em inventariar e descrever os seus objetos de estudo. Para ele, a ciência não deve se restringir ao específico, mas também se ocupar do geral e da descrição do mundo.
Nem a idade avançada e ou mesmo a dificuldade em ler -Monod precisa recorrer a uma lupa que traz atada a um barbante, que usa como corrente- representam empecilhos ao pesquisador, que repete sempre que ainda tem muito trabalho a fazer.
Monod está sendo objeto de diversas homenagens na França este ano. Além de uma cerimônia realizada na Sorbonne em abril, sua vida e obra são temas de pelo menos quatro livros publicados desde o início do ano: "Le Chercheur d'Absolut" (O Pesquisador do Absoluto), "Terre et Ciel" (Terra e Céu) e "Hommage a Théodore Monod - Naturaliste d'Éxception" (Homenagem a Théodore Monod: Naturalista Excepcional). Este último, por exemplo, foi escrito por pesquisadores de cada uma das áreas às quais Monod se dedicou em suas pesquisas.
O quarto livro lançado este ano, "Les Carnets de Théodore Monod" (Os Diários de Théodore Monod), consiste em uma compilação de extratos dos diários de Monod, feita por um de seus filhos, Cyrille.
Leia, abaixo, a entrevista concedida por ele à Folha.
*
Folha - O sr. tem uma formação em zoologia, mas realizou vários estudos arqueológicos. Como se deu a passagem entre essas áreas?
Théodore Monod - Não foi apenas a arqueologia. Eu entrei para o museu (Nacional de História Natural) quando tinha 20 anos. Na época ele se chamava Museu de Pesca e Proteção Colonial de Origem Animal. E os assistentes desse laboratório eram enviados a uma das colônias francesas da época.
Um dia, disseram para mim: "você vai para a Mauritânia". Evidentemente eu não sabia direito onde ficava a Mauritânia. Eles me enviaram para fazer pesquisas sobre pesca e peixes.
Eu estava na costa, na verdade em um oceano que até hoje se chama Atlântico. Atrás de mim havia um outro oceano, de areia (o deserto do Saara). No final de minha estadia na Mauritânia, um oficial que também estava terminando sua temporada na colônia, iria pegar um barco e voltar a Bordeaux. Nós avançamos em uma expedição até a Mauritânia ocidental, até o fim do Saara Espanhol, até o Senegal. Esta foi a minha iniciação à vida do deserto.
Folha - Quando foi isso?
Monod - 1923. Eu tinha 21 anos. Fiquei muito interessado. Todas as vezes que pude, voltei para visitar o oceano de areia. Fiz meu serviço militar no Saara central como "chamelier" (pessoa que conduz camelos e cuida dos animais) de segunda classe.
Fiquei feliz porque escapei da caserna. Eu preferia a zoologia e a pré-história e não perdi tempo: trabalhei com a arqueologia ali mesmo. Eu voltei várias vezes para lá. Volto todos os anos ao Saara.
Folha - Este ano o sr. vai para lá?
Monod - Já fui duas vezes e volto em outubro para uma missão de botânica em uma região que fica a nordeste do Chade. Preciso voltar porque em março de 1940 recolhi uma planta na fronteira com a Líbia. Recolhi apenas um exemplar. Foi espantoso porque não era apenas uma espécie, mas um gênero, e não se conhece mais do que um exemplar dessa planta. Ela ainda não foi suficientemente estudada, descrita em detalhe.
Folha - É por isso que o sr. vai voltar?
Monod - É.
Folha - Como foi a descoberta do homem de Asselar?
Monod - Foi durante uma expedição a camelos. Depois de uma longa viagem a partir da Argélia, chegamos até a Nigéria e depois a Dacar. O homem de Asselar foi descoberto nesse ponto. Talvez ele seja mais recente do que imaginávamos. Achávamos que ele era do Neolítico, mas, de qualquer maneira, ele é do fim da pré-história. De qualquer maneira, ele é interessante porque estava muito fossilizado. Os homens fossilizados são muito raros no Saara, não se sabe por quê.
Folha - Era difícil trabalhar no Saara nos anos 20?
Monod - As expedições científicas eram a camelo e havia um destacamento militar, que pertencia à Companhia Saariana. Eles nos acompanhavam no Saara central, em direção ao sudoeste. Essas viagens me levaram a me interessar por disciplinas muito variadas. A geologia, em primeiro lugar. Escrevi um livro sobre um platô que existe na Mauritânia, que ainda me interessa muito porque estudamos, naquela região, um acidente circular com 50 km de diâmetro, que tem círculos concêntricos muito regulares, que parecem ter sido desenhadas com compasso.
Folha - O sr. descobriu e inventariou muita coisa. Ainda há espaço para a descoberta?
Monod - Mas é claro. Em todas as disciplinas há algo interessante a se descobrir. Há muito trabalho a ser feito. É preciso saber o que estamos procurando.
Folha - Mas o acaso, ele não tem um papel importante na descoberta científica?
Monod - Sim, certamente. Mas há também a curiosidade do pesquisador. Veja essa peça (mostrando uma pedra descoberta no Saara). De um lado ela está polida, de outro não. Isso ocorre porque ela ficou cerca de 5.000 anos virada com um lado para cima, desde quando um senhor a largou no lugar onde ela foi encontrada.
E passaram elefantes, girafas e os homens da pré-história por aquele lugar e ninguém a virou. Em todos os lugares há coisas interessantes.
A pré-história foi muito longa. Houve uma evolução muito grande em termos de técnicas, das pedras lascadas até armas muito delicadas. Os povos nômades se tornaram sedentários no Neolítico. Os homens cultivavam o milho e o trigo, criavam animais domésticos. Essa foi a revolução neolítica, na qual ainda vivemos.
Folha - Como assim?
Monod - Do ponto de vista da técnica, nós fazemos as mesmas coisas. A maior parte das coisas já foi feita, descoberta. Nós apenas aperfeiçoamos as descobertas essenciais do Neolítico. Aperfeiçoamos as armas. Os homens continuam a gostar da guerra e da violência, o que ameaça o futuro.
Folha - Quando fala em ameaça, o sr. se refere ao homem?
Monod - O futuro do homem, dos primatas em geral, está ameaçado porque eles fazem um monte de bobagens, que estão colocando a própria sobrevivência em risco.
Além disso, devemos levar em conta a evolução dos grandes grupos zoológicos. Os grupos são assim. Eles vivem um tempo e depois desaparecem. Por que os homens teriam o privilégio de viver para sempre?
Folha - Como o sr. vê o método da ciência hoje, que tende cada vez mais à especialização?
Monod - Ainda acredito no conhecimento. Mas hoje em dia ele é cada vez mais pontual. Há um abandono das idéias gerais em nome de questões particulares. Sem dúvida elas devem ser tratadas. No entanto, as ciências de base, como a zoologia e a botânica, não podem ser eliminadas em nome da biologia molecular, por exemplo. Não há uma área que deva ser privilegiada. Na França, hoje em dia, todos os créditos vão para o que está na moda. Apesar disso, instituições como o Museu de História Natural continuam a fazer o inventário do planeta, das espécies, das plantas.

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