São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Fuzil que mudou a guerra chega aos 50

GUY MARTIN
DA "ESQUIRE"

Há 50 anos, um soldado soviético chamado Mikhail Kalachnikov criou um fuzil automático. Hoje, 55 milhões de Kalachnikovs depois, a União Soviética não existe mais, as guerras de guerrilha predominam, e o soldado que inventou o Kalachnikov é um velho que não é pago há três meses.
O modo como os homens matam, dentro e fora do campo de batalha, mudou fundamentalmente meio século atrás, quando a Administração Central de Artilharia da URSS adotou o "Avtomat Kalachnikova 1947", ou AK-47, como arma padrão do Exército soviético.
O fuzil Kalachnikov passou a ser a ferramenta de conflito de toda espécie em nossa metade do século. Nestes 50 anos foram produzidos 55 milhões de Kalachnikovs -mais do que qualquer outra arma de fogo na história.
O Kalachnikov é a mais plebéia das armas. É feito de lâminas de aço prensadas e fundidas com alta tolerância -ou seja, já vem com resistência embutida. Pode ser limpo com uma pedrinha introduzida no cano. Os soviéticos jogavam punhados de poeira e cascalho dentro de seus Kalachnikovs e os arrastavam atrás de jipes, amarrados com cordas, antes de levá-los aos estandes de testes.
Os fuzis tinham de ser projetados assim -eram feitos para um Exército que enfrentava condições hostis de todo tipo, mas que não dispunha de recursos. Os Kalachnikovs já decidiram o destino de nações, capacitando pessoas que não têm meios para determinar a forma de um campo de batalha a decidir onde é possível travar guerra.
Volta ao mundo
Devido ao fato de que mesmo os AK-47s mais velhos raramente apresentam problemas de funcionamento -e podem ser desmontados por qualquer criança zairense, cambojana ou liberiana-, eles conservam seu valor no campo de batalha, independentemente de seu preço -ou seja, continuam a matar. É por isso que Kalachnikovs voam pelo mundo, levados pelo princípio do mercado do sangue, como abelhas atrás do néctar de flores.
O Kalachnikov foi a arma escolhida em inúmeros atentados hoje célebres: no ataque de "Setembro Negro", em 1972, aos atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique; no assassinato de Anuar Sadat, em 1981; no assassinato de cinco escolares em Stockton, Califórnia, em 1989; na tentativa de assassinato do sucessor de Sadat, Hosni Mubarak, em 1995, e na invasão da residência do embaixador japonês em Lima pelo Tupac Amaru, em dezembro passado.
O AK-47 passa de mão em mão sem dificuldade. Os soviéticos deram Kalachnikovs aos ugandenses, que os passaram aos tutsis de Ruanda, que os forneceram às forças de Laurent Kabila, no ex-Zaire. Após duas décadas de guerra civil no Moçambique, havia cerca de 6 milhões de AK-47s no país.
Passa-passa no Oriente Médio
Uma cadeia de passa-passa semelhante percorre o Oriente Médio. Primeiro os soviéticos construíram uma fábrica de Kalachnikovs no Egito e armaram os sírios. Egito, Síria e outros países árabes supriram a OLP de Kalachnikovs.
Em momentos de ócio durante os anos 70, a Fatah (a principal facção da Organização pela Libertação da Palestina) treinou quadros da Facção do Exército Vermelho, da Alemanha Ocidental, no uso de Kalachnikovs, em campos de treinamento na Jordânia; depois repassou o excedente de fuzis aos guerrilheiros separatistas do Exército Republicano Irlandês, o IRA.
No Líbano, na década de 80, o Irã garantiu o suprimento de AK-47s ao Amal e ao Hizbollah. Os iraquianos supriam seus fantoches libaneses. Depois todos se aprontaram para combater os israelenses, cujos soldados, como os americanos no Vietnã, frequentemente trocavam seus rifles pelos Kalachnikovs capturados de soldados inimigos.
Os EUA também adoravam o AK: em 1982 a CIA o escolheu para armar os guerrilheiros mujahedines no Afeganistão, e 400 mil AK-47s foram enviados ao país via Paquistão. Nessa época os soviéticos já haviam lançado AK-47s de calibre leve, com alcance e precisão maiores. Como a CIA não tinha acesso aos estoques, os AK-47s modernos viraram troféus para os mujahedines. O único jeito de conseguir um era matar um russo.
Mercado
O preço do Kalachnikov no varejo varia em função da disponibilidade e da demanda de mortes. Na fronteira entre Tailândia e o Camboja, onde os guerrilheiros do Khmer Vermelho estão cansados e com fome, um AK-47 custa US$ 10; na Tchetchênia, no auge dos combates, os pracinhas russos desmoralizados vendiam seus fuzis aos tchetchenos que os estavam matando por US$ 150; na fronteira entre Angola e a Namíbia, em 1995, um AK-47 custava entre US$ 13 e US$ 18; no bairro de East New York, o mais violento do distrito do Bronx, em Nova York, AK-47s eram vendidos a US$ 600 em abril de 1997; entre as gangues da zona sudoeste de Los Angeles, custam US$ 500; no Curdistão iraquiano, US$ 17.
Esse fuzil que está completando 50 anos é a arma pessoal mais mortífera produzida pelo homem.

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