São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Inventor desfruta glória sem dinheiro

GUY MARTIN
DA "ESQUIRE"

Em 1994, durante sua fase alcoolizada, anterior à cirurgia de cinco pontes de safena, Boris Ieltsin compareceu à festa do 75º aniversário de Kalachnikov, em Ijevsk, cidade onde vive Mikhail Kalachnikov, inventor do fuzil que leva seu nome. Do alto do pódio, fez uma promessa delirante -que o governo russo tentaria patentear seu design, para que Kalachnikov pudesse ganhar dinheiro com ele. Evidentemente, nada foi feito.
"As normas internacionais existem para isso, e nem o presidente, nem mais ninguém, as pode violar", diz Kalachnikov. Tudo que ele projetou foi violado, em todo lugar. É um fato simples, mas espantoso: Kalachnikov não ganhou dinheiro. Não lhe resta outra alternativa senão procurar administrar sua lenda, coisa que ele faz aos trancos e barrancos.
O papel mais cansativo que Kalachnikov desempenha hoje é o de mascote. As duras exigências da "nova" vida na Rússia, sua falta de dinheiro e seu desejo infindável de servir aos resquícios do Estado o levaram a colaborar com o Rosvooroujenie, o órgão de defesa encarregado de vender armamentos russos no exterior.
Hoje em dia, o órgão tem uma pauta de prioridades especialmente urgente -obter dinheiro vivo-, que ele consegue vendendo submarinos, não AKs.
Sua participação no calendário de feiras de armamentos em 1997 revela a sede por divisas: Ancara em fevereiro, Abu Dabi em março, Nova Déli e Bancoc simultaneamente, em abril, Cingapura em maio, Le Bourget, França, em junho, Ancara outra vez em agosto, Bancoc outra vez em outubro e Malásia no final do ano.
Ele vai, francamente, como enfeite, para dar um pouco de gravidade histórica à venda de aviões e tanques. Tendo em vista sua saúde precária (uma degeneração neural crônica deixou insensíveis seu antebraço e parte da mão direita), seu problema de audição, sua aversão ao dinheiro e sua monumental aversão aos contatos com desconhecidos, típica dos siberianos, esse trabalho é uma tortura criada de encomenda para ele pelo inferno capitalista que ele despreza. "Eles me obrigam a ir", diz.
Troca de vodca
Sentado ao lado do piano, Kalachnikov mostra uma carta. É de Eugene Stoner, o homem que criou o M-16, agradecendo Kalachnikov pelo presente que este lhe dera, uma garrafa de vodca Kalachnikov. Na virada do milênio, os deuses do design de armas no século 20 se presenteiam com garrafas de bebida.
O que vem acontecendo é que Kalachnikov, num esforço para sobreviver, vem fechando pequenos negócios que nunca rendem muito. A destilaria que produz a vodca Kalachnikov também passa por uma fase difícil.
Ele teria poder para conseguir que entrássemos na fábrica, mas não quer que a conheçamos. Não porque ela guarda velhos segredos de Estado, mas porque o lugar onde passou a maior parte de sua vida de trabalho está defunta.
Há outras coisas que ele não quer que vejamos. Seu pai, o vigoroso Timofei Aleksandrovitch, aparece nas histórias da infância de Kalachnikov, mas depois desaparece repentinamente, nos anos 30. Em qualquer narrativa russa, não é bom sinal quando alguém some na época dos expurgos e das migrações forçadas impostos por Stálin.
Na verdade, a família inteira, incluindo Kalachnikov, então com 12 anos, foi exilada na Sibéria central, com o pai. Timofei morreu lá. O coronel Chkliaiev, secretário de Kalachnikov, descreve o que aconteceu como "uma morte normal, causada pelo trabalho forçado".
No início dos anos 50, Kalachnikov, já nomeado deputado, viu Stálin, o responsável pela morte de seu pai, muitas vezes, no Soviete Supremo. Eles nunca conversaram. Quando lhe pergunto sobre seus pais, responde: "A Sibéria é uma floresta escura".
(GM)

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