São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Russo criou arma após ser ferido na 2ª Guerra

GUY MARTIN
DA "ESQUIRE"

Mikhail Timofeievich Kalachnikov é um homem baixinho, de porte majestoso. Não mede mais do que 1,60 m e veste calça de moletom azul viva, suéter e sandálias do tipo que se encontra em supermercados. Apesar do corpo pequeno e da voz cansada, tem um ar de gravidade quase burlesca, que parece saída do século 19. É como se vestisse um manto de ópera.
Kalachnikov nasceu em 10 de novembro de 1919, o 16º dos 17 filhos de uma família de camponeses, na aldeia de Kuria, na República Autônoma de Gorno-Altai, sul da Sibéria. Sua mãe era semi-analfabeta. Dez de seus irmãos morreram nas fomes e epidemias subsequentes que varreram a Rússia nos anos 20 e 30.
Quando garoto, Kalachnikov gostava de desmontar e mexer com objetos de todo tipo. Sua primeira pistola, que fez aos dez anos, disparava palitos de fósforo.
Ele abandonou a escola da aldeia porque encontrou e estava reformando uma velha pistola Browning e temia ser preso. Deixou sua família para ir trabalhar no vizinho Cazaquistão, na ferrovia Turquistão-Sibéria, uma das obras empreendidas na campanha de industrialização acelerada dos anos 30. Em 39, foi recrutado pelo Exército como armeiro, e aos 20 anos, inventou um aferidor de combustível que foi posto em produção.
Kalachnikov tornou-se sargento de tanque quando os alemães lançaram seu malfadado avanço em direção leste, no verão de 1941. No outono daquele ano, foi ferido durante uma retirada no front de Briansk. Um disparo alemão acertou seu tanque em cheio.
Kalachnikov recebeu estilhaços num ombro e no peito. Ele e sua tripulação conseguiram fugir do tanque inutilizado, mas passou uma semana antes de ser tratado, porque tiveram que voltar até sua própria linha de combate, lutando no caminho. Ele tinha 21 anos.
A invenção do AK-47 pode ser atribuído diretamente aos ferimentos provocados pelo canhoneiro daquele tanque, pois o período de convalescença tirou o jovem inventor da guerra e lhe deu tempo para pensar. Kalachnikov começou a desenhar sua primeira submetralhadora quando ainda estava no hospital.
Seus ferimentos foram suficientemente graves para lhe merecer uma licença de seis meses em Alma-Ata, no Cazaquistão, onde antes trabalhara na ferrovia. Ele perguntou a seus colegas se o ajudariam a produzir um protótipo de submetralhadora -uma iniciativa que teria sido ousada em qualquer momento da história soviética, mas o era ainda mais durante a guerra. Não tinha diploma de engenharia nem pistolão no Kremlin, mas conseguiu produzir duas armas. O ano era 1942.
O Exército rejeitou o projeto, mas Kalachnikov foi encaminhado ao laboratório de armas de fogo do Instituto da Aviação, no Cazaquistão. Ele se declarara projetista munido de nada além de sua vontade, e o governo o aceitara. Casou-se, teve um filho, Viktor, e começou a produzir projetos num escritório de verdade.
Em 1943, lhe deram alguns cartuchos novos e pediram que criasse um rifle automático no qual usá-los. Quatro anos depois, Kalachnikov criou a arma pedida, o AK-47; em 1949, a primeira unidade de produção do fuzil foi transferida para Ijevsk.
Durante os 50 anos da Guerra Fria, Ijevsk foi um dos lugares onde os soviéticos colocaram as coisas que não queriam que ninguém encontrasse. O notório gulag Perm-36 fica 160 km a norte; a cidade nuclear fechada de Tcheliabinsk, 112 km ao sul.
Hoje Ijevsk está passando por problemas. Em 1991, a Fábrica de Máquinas de Ijevsk empregava 50 mil pessoas. Hoje tem 30 mil empregados, metade dos quais trabalham em regime de meio período ou estão passando as chamadas "férias forçadas". Kalachnikov, ele próprio semi-aposentado, não é pago há três meses. As armas militares pequenas, que garantiam a subsistência da Ijmash, deixaram de ser produzidas aqui.
Baixa qualidade
No mercado internacional, o AK-47 está sofrendo os efeitos da má administração ao estilo soviético antigo, resultado de seu sucesso espantoso no campo de batalha, combinado com décadas de economia stalinista por decreto.
Tudo isso só vem agravar a miséria em Ijevsk. Quando a Guerra Fria se intensificou, nos anos 50, os soviéticos começaram a construir fábricas de fuzis na China, Alemanha Oriental e Tcheco-Eslováquia, entre outros países.
A hegemonia era da produção, não do dinheiro. Países não aliados dos soviéticos, especialmente Finlândia e Israel, começaram a produzir suas próprias versões. Hoje, Ijevsk compete com modelos tchecos, búlgaros e chineses -os piores de todos- pelas novas vendas.
(GM)

Tradução Clara Allain

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