São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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194 tesouradas

"Se você mer perguntar por que estou aqui, eu não sei. Acho que estou fazendo hora extra".
Sandra Junqueira Franco, 31
Lucidez e senso prático salvaram a vida da escriturária Sandra Junqueira Franco, 31, que, mesmo depois de levar 194 tesouradas, conseguiu prender a respiração e fingir-se de morta para enganar seu agressor.
No último dia 9 de junho, por volta de 8h20, Sandra foi acordada pelo porteiro do seu prédio em Higienópolis (região central): seu amigo Andrei Silva de Souza, 22, pedia para subir.
"Ele entrou, me beijou no rosto, me abraçou", conta Sandra. Souza trabalhou dois anos no cartório do pai de Sandra. Ele estava tendo problemas com a família por ser homossexual e Sandra costumava aconselhá-lo.
Naquela segunda-feira, ele foi procurá-la para pedir dinheiro, mas ela não deu. "Sabia que ele não pagaria", diz.
Sandra falou para Souza esperá-la, para irem juntos para o centro. Enquanto Sandra se vestia, ele invadiu o seu quarto. "Levei o maior susto. Com uma tesoura na mão, ele me obrigou a assinar um cheque de R$ 900", conta.
Depois, Souza deitou Sandra de bruços na cama, amarrou-a com um cordão e colocou um pano em sua boca, porque ela gritava por socorro. "Ele sentou em cima de mim e começou a me furar."
Enquanto golpeava, Souza não falava nada. Com força -Sandra tem cerca de 1,80m-, ela conseguiu se virar, soltar as mãos e segurar uma parte da tesoura. "Ele falou: 'Solta, que eu preciso fazer isso'. E eu pedia: 'Pára, eu já perdi muito sangue, você já me matou'."
Enfraquecida, ela acabou soltando a tesoura e Souza voltou a atacá-la. Acertou uma tesourada embaixo do seu olho e outra na bochecha, que atravessou a boca e quebrou um dente. "Cuspi fora o dente para não engasgar. Pensava em tudo, estava totalmente consciente."
Souza também dava socos e pontapés. "Virei de lado e comecei a rezar muito. Me lembrei da minha avó, já morta, e pensei: 'Vó, pelo amor de Deus, se for para eu morrer agora, me leva, porque não estou aguentando mais."
Naquele momento, uma tesourada furou o pulmão de Sandra. "Ele parou e eu me fingi de morta. Fiquei segurando a respiração, com o olho cerrado." Souza olhou o corpo inerte e saiu do quarto. Aproveitando sua ausência, Sandra colocou a toalha no pescoço, para estancar o sangue que escorria.
Souza voltou ao quarto. Sandra observava suas ações com os olhos semicerrados. "Na hora em que ele tirou a calça jeans, vi que estava com outra por baixo. Ele tinha planejado tudo."
Antes de sair, ele ainda abaixou para ver como Sandra estava. "Comecei a respirar como se agonizasse. Ele me chutou nas pernas, mas não reagi. Ele fechou a porta e foi embora."
Sandra se arrastou para cima da cama e ligou para a polícia. "Ainda não sentia dor. Liguei também para a minha cunhada, que mora no mesmo prédio, mas falei para ela ficar calma e não avisar o meu pai."
Sandra só começou a sentir dor quando escutou a sirene da polícia. "Quando os policiais me viram, ficaram horrorizados." Eles enrolaram Sandra na colcha e a levaram para a Santa Casa. "A cada buraco na rua, eu gritava de dor."
Sandra chegou ao PS agonizando, com choque hemorrágico -ela perdeu 2,5 litros de sangue, 50% do total do corpo- e pressão de zero por zero. Foram sete horas na mesa de cirurgia e 278 pontos.
Sua recuperação foi rápida: teve alta oito dias depois e agora já parou também a fisioterapia. Segundo o médico Armando Casaroli, 38, que atendeu Sandra na Santa Casa, 30% das pessoas que sofrem traumas tendem a morrer minutos ou algumas horas depois do acidente. "Esse tempo é a 'oportunidade de ouro' dos médicos, pois é a hora em que podem mudar o final da história", diz. "Se a Sandra não tivesse conseguido ligar para a polícia, teria perdido a consciência e provavelmente morreria em decorrência da grande perda de sangue."
Sandra está fazendo uma terapia de apoio, uma vez por semana, mas ainda não sai sozinha. "Tenho de ir aos poucos. A gente pode até ser forte, mas não uma pedra de mármore. Voltarei para o meu apartamento (ela está na casa dos pais), mas vou trocar os móveis do quarto. Mantê-los seria exigir demais de mim mesma."
O agressor está preso, e ela diz não sentir ódio. "Só não entendo o motivo. Não acho que ele é louco, mas burro. Foi idiota: tentou acabar com a minha vida e acabou com a dele. Está numa cela, com um monte de presos e só tem 22 anos. Tenho pena. A única coisa que me incomoda é pensar que vou vê-lo no julgamento."

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