São Paulo, quarta-feira, 16 de julho de 1997
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Chamem o padre Feijó

ELIO GASPARI

Completam-se amanhã 156 anos da dissolução da Guarda Real de Polícia do Rio de Janeiro, a Polícia Militar da época. Depois de uma memorável baderna que começou com a abdicação de D. Pedro 1º, o ministro da Justiça, padre Diogo Antonio Feijó, mandou para casa o corpo da tropa que infernizava a vida da cidade.
Filho de pais desconhecidos, homem valente e pobre, Feijó gostava de "remédios fortes e mui prontos". Tendo limpado os quartéis, criou a Polícia Militar, dando aos soldados casa, comida, farda lavada e um salário nove vezes superior ao que pagava à Guarda Real. Os novos PMs passaram a ganhar o equivalente ao salário de um artesão. O segundo comandante dessa polícia foi o major Luís Alves de Lima e Silva. Ficou sete anos na função e mais tarde se tornou conhecido pelo título de Duque de Caxias.
PMs insubordinados por conta de salários miseráveis não são coisa nova. Coisa velha é que raramente encontram alguém como o padre Feijó do outro lado da linha. Até porque, se era capaz de dispensar a polícia, era capaz também de se envolver pessoalmente na defesa de um escravo espancado.
Quem viu a campanha eleitoral de 1994 lembra que o quinto dedo da mão do candidato Fernando Henrique Cardoso era a segurança. Tratava-se de um expediente, visto que o governo federal muito pouco pode fazer para dar paz aos grandes centros urbanos. Lastimavelmente, desde que a PM mineira se insubordinou, o governo da União, que pouco podia, fez nada. Fica a impressão de que está à espera do agravamento da situação para sair com "remédios fortes". Será uma demonstração desnecessária de valentia.
A insubordinação da PM em oito Estados é motivo mais que suficiente para que se deixe de fazer de conta que nada está acontecendo. De um lado, os salários dos policiais são um convite à propina, à delinquência e à desordem. De outro, deixá-los marchar pelas ruas das cidades vestindo fardas ou capuzes, para depois ceder às suas reivindicações, é a melhor fórmula para incentivar a baderna. Ou se decide atendê-los, ou se decide recolocá-los na linha. Num caso chama-se o caixa. No outro, as Forças Armadas.
Se o governo federal ou os governadores encurralados estão esperando que a temperatura suba, brincam com pólvora. A entrada de tropas do Exército nos jardins do Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, foi uma operação silenciosa e eficaz, mas nada garante que esse sucesso vá se repetir. Assim como há riscos quando se manda a PM do Pará reprimir manifestações de sem-terra, há riscos quando se manda o Exército reprimir manifestações de PMs.
É uma pena ver o governo fingindo que vive no século 21 enquanto tem às costas uma baderna do século 19, e, para piorar as coisas, não há um padre Feijó à mão.
O governo patrocinou uma convocação extraordinária do Congresso, está envolvido na querela da tunga das aposentadorias, mas não há notícia de uma simples reunião para discutir o caso das PMs. A idéia de modificar os dispositivos constitucionais que estruturam o poder de polícia do Estado não acordou os sentimentos reformistas do Planalto.
Se as recentes insubordinações fossem um problema isolado num sistema policial eficiente, a conta ficaria mais barata. Ela é muito mais cara porque as PMs estão associadas a massacres como o de Eldorado do Carajás, a truculências como a de Diadema e a execuções como as dos invasores de imóveis de Sapopemba. São corpos policiais que, por falhas estruturais e maus salários, complementam seus orçamentos terceirizando a segurança pública, ou, em alguns Estados, a rede de proteção ao banditismo. Disso resulta que, se o problema dos salários for resolvido amanhã de manhã, as coisas voltarão a ser o que eram, e continuarão péssimas.
Há poucos dias, uma brasileira da Tijuca fez com que o samba "Coisinha do Pai" fosse tocada em Marte. Chama-se Jacqueline Lyra, tem 35 anos, é engenheira aeroespacial e está encarregada do controle da temperatura do robô Sojourner. Foi para os Estados Unidos com um diploma, peito e raça. Jacqueline é casada com um funcionário do Corpo de Bombeiros de Los Angeles. São muitas as lições que a vida dessa moça oferece ao tipo de sociedade que funciona no Brasil. Uma delas é a de que na sociedade americana uma engenheira aeroespacial e um bombeiro podem formar um casal. Em Pindorama, dificilmente vivem no mesmo bairro. Com os salários que ganham, os PMs e os bombeiros vivem em bairros onde é mais fácil encontrar um papelote de cocaína do que um diploma universitário.
A polícia brasileira desandou porque foi usada para segregar os segregados, e a baderna que se vê nos quartéis é produto da insatisfação dos segregados desandados. Há 166 anos, diante de uma situação parecida, Feijó teve duas valentias. Acabou com o que havia de errado e criou uma coisa nova, bem paga. Hoje, não há coragem para fazer nenhuma das duas, muito menos ambas.

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