São Paulo, quarta-feira, 16 de julho de 1997
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A nova cara da sucessão

ALMINO AFFONSO

O presidencialismo, ao longo de mais de um século de República, revelou sem disfarces seu caráter autoritário. À falta de instituições às quais, com agilidade, se possa recorrer nos movimentos de crise política, sobretudo quando o processo sucessório se deflagra, a instabilidade governamental vem à tona, expondo o país aos desmandos da força repressiva ou à farsa de soluções jurídicas desfiguradoras da ordem imperante.
Com a instituição do direito à reeleição de presidente da República, governadores e prefeitos, o cenário ganha cores mais fortes. Já não se estará discutindo, por intermédio do sucessor que se logre eleger, a continuidade da influência política de quem esteja no poder, mas a própria permanência do governante.
Como acentua o professor Bandeira de Mello, "uma coisa é poder mobilizar os recursos de que a administração dispõe para eleger um sucessor; outra, muito diferente, é, tendo-os à disposição, conter-se minimamente quando se trate de eleger a si próprio".
É nesse quadro que se dará a sucessão de 1998. No âmbito presidencial, pela maior visibilidade e pela estatura política do presidente Fernando Henrique Cardoso, os freios de uma conduta ética se imporão.
Mas, pelo país afora, nos confrontos estaduais e municipais, tendo em conta o caudilhismo que sobrevive e a soma de interesses a ele conjugados, não me resta dúvida de que tudo há de ser feito para assegurar a vitória do continuísmo. Podem as oposições respectivas, a despeito desse condicionamento asfixiante, levantar a crista e vencer?
A resposta traz a tiracolo a experiência norte-americana. Como se as tradições culturais não valessem, acredita-se que algumas regras jurídicas limitadoras serão suficientes.
Vale relembrar a advertência de Tocqueville: "A intriga e a corrupção são vícios naturais aos governos eletivos. Quando, porém, o chefe de Estado pode ser reeleito, tais vícios se estendem indefinidamente e comprometem a própria existência do país. Quando um simples candidato quer vencer pela intriga, as suas manobras não poderiam exercer-se senão sobre um espaço circunscrito. Quando, pelo contrário, o chefe do Estado mesmo se põe em luta, toma emprestada para seu próprio uso a força do governo".
O deputado Carlos Apolinário, relator do projeto de Lei Eleitoral, tenta criar o equilíbrio na disputa dos candidatos, proibindo os governantes que pleiteiem a reeleição de participar de inaugurações de obras nos 90 dias anteriores à eleição.
O governador Mário Covas, até agora impossibilitado de maiores realizações, por falta de recursos financeiros, contra-argumenta: "Passei dois anos e meio saneando as finanças do Estado. Agora que posso levar a cabo as obras programadas, não poderia inaugurá-las, caso elas fossem concluídas na reta final de meu governo. O que faço, então? Escondo-me?".
O argumento é irrespondível. É como se estivesse vedado continuar com eficiência a boa administração, na proximidade das eleições... Ou seja: estabelecido o direito à reeleição, é inevitável o descompasso na disputa eleitoral, prevalecendo as vantagens dos governantes que se candidatam.
O grave é que, com a instituição do direito à reeleição, o "processo sucessório" começa no primeiro dia do exercício do mandato. Desde aquele instante, o chefe do governo se porta como um candidato de fato, não conseguindo dissociar suas funções de governante de sua conduta eleitoral.
Volto a reportar-me a Tocqueville, em sua obra clássica "A Democracia Americana": "É impossível considerar a marcha normal dos negócios de Estado, nos EUA, sem perceber que o desejo de ser reeleito domina os pensamentos do presidente; que toda a política de sua administração tende para esse ponto; que as suas menores providências são subordinadas àquele objetivo; sobretudo, que, à medida que se aproxima o momento da crise, o interesse individual substitui-se no seu espírito ao interesse geral".
Detenho-me no que, à primeira vista, parece ser uma preocupação teórica, porque a análise conjuntural -pelo menos no caso da eleição a presidente da República- não comporta surpresas. É pouco provável que se altere o quadro de favoritismo que envolve o nome do presidente Fernando Henrique Cardoso.
O quanto pude, resisti à tese do direito de reeleição. Votei contra a emenda constitucional que a instituiu. Propus que a submetêssemos a uma consulta plebiscitária. Tudo em vão.
Agora, diante de uma norma institucionalizada, só me resta alertar para as consequências políticas de sua prática: pois ela, mais cedo ou mais tarde, pode enrijecer ainda mais o "presidencialismo imperial" e abrir caminho para um "porfiriato", ainda que menos ambicioso.
Menos importante do que o resultado das eleições de 1998, a sucessão que se avizinha marcará uma nova fase, cheia de interrogações, na vida pública brasileira.

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