São Paulo, sexta-feira, 18 de julho de 1997
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E assim nasceram medo e monstros...

JACQUES LE GOFF
ESPECIAL PARA O "CORRIERE DELLA SERA"

Na lenta, mas profunda, mutação que a civilização européia ocidental da Antiguidade à Idade Média conheceu, uma das modificações mais significativas é aquela que diz respeito às relações entre o homem, o animal e a natureza.
Dessa história essencial, que hoje conhece uma vasta escala de transformações, Gherardo Ortalli escreveu recentemente, reunindo quatro estudos anteriores, um ensaio erudito, profundo, mas vivaz, que enriquece nosso conhecimento da Idade Média.
O título do livro é "Lupi, Genti, Culture - Uomo e Ambiente nel Medioevo" (Lobo, Gente, Culturas - Homem e Meio Ambiente na Idade Média), publicado pela editora Einaudi.
Excelente historiador, ele incorpora mitos e realidade, experiências cotidianas e medos do imaginário, episódios pitorescos ou dramáticos, história das culturas, das idéias, dos comportamentos.
Na Alta Idade Média, o Ocidente parece sofrer a agressão de animais não domesticados numa natureza na qual o homem desenvolveu sua influência.
Uma perda de controle sobre o ambiente, que é um dos aspectos da crise geral do mundo antigo, diminui a capacidade de o homem defender-se dos animais, domesticá-los.
As ocasiões de encontro e desencontro entre o homem e os animais se multiplicam, as fronteiras entre o mundo natural e animal e o universo humano se atenuam.
No plano cultural, se produz "uma grande desordem entre o antropocentrismo da triunfante doutrina cristã e a objetiva situação ambiental".
A afirmação no plano divino da subordinação do animal ao homem, já presente no "Gênese", coloca mais dramaticamente em relevo a impotência do homem em cumprir o programa do Criador.
Um dos aspectos mais importantes dessa regressão da influência do homem sobre a natureza se observa no desenvolvimento da caça, atividade medieval por excelência.
Emergências agressivas e desaparecimentos assinalam a volta da Antiguidade à Idade Média. O rato negro (Rattus rattus) chega ao Oriente juntamente com as duas grandes ondas de peste bubônica.
Monstros
Nos limites tornados mais incertos entre o homem e o animal, proliferam animais imaginários, entre os quais os monstros. Assim, no homem nasce o medo. A primeira vítima é o lobo, já que no homem se desenvolve a sensação de que ele é o principal inimigo.
O lobo era temido na Antiguidade, mas, na Idade Média, a sua imagem fica próxima à maldade mais agressiva e mais negra.
Os poderes públicos e privados organizam, no âmbito feudal rural, mas também urbano, uma guerra mortal contra o inimigo número um, com caças e expedições estimuladas por prêmios.
O lobo é ainda mais detestado que um outro animal muito temido, a serpente, a quem se concede algum lado positivo. E, no território inquietante onde o homem e o animal nem sempre se distinguem, se multiplica aquele ser assustador que é o lobisomem.
O lobisomem forma uma dupla terrificante junto a outro objeto dos medos medievais: a floresta. Lá, onde parece impotente, o homem recorre, como sempre, ao protetor por excelência, o santo.
O último capítulo do livro é uma obra-prima de análise histórica: é o comentário do longo conto do cronista florentino Giovanni Villani que narra a terrível inundação do Arno no início de 1333.
E Villani exprime a grande pergunta que se colocam os florentinos, incluindo os mais cultos: "Curso da natureza ou juízo de Deus"?
Ortalli demonstra como esses homens do século 14 tentam conciliar uma explicação "natural" com a fé tradicional na providência divina. No final das contas, o fator religioso fornece a última chave da catástrofe.
Nas mutantes relações entre o homem da Idade Média e o meio ambiente, a última palavra pertence, ainda, a Deus.

Livro: Lupi, genti, culture - Uomo e ambiente nel Medioevo
Lançamento: editora Einaudi
Quanto: US$ 20, em média (209 págs.)

Tradução Anastasia Campanerut

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