São Paulo, sábado, 19 de julho de 1997
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O estalo do Vieira e outros estalos

ALBERTO DINES
COLUNISTA DA FOLHA

Gralhas são sempre úteis, sejam as aves ou no sentido figurado, o que se chamava de erro tipográfico, hoje de digitação ou transmissão.
Vitimado por duas destas falhas técnicas no último sábado -a mais visível converteu o estalo do Vieira em o estado do Vieira-, recebi dos atentos leitores inúmeros avisos. O mais engraçado, de Londres, via Internet, assinado por Ivan Lessa, o último dos cariocas, perguntando onde fica o novo Estado do Vieira: ao lado da Bahia ou no lugar do Maranhão?
O acidente no texto serve de pretexto para voltar ao assunto com uma achega deste vierófilo diletante ao cenáculo de vierólogos: o estalo do Vieira foi inventado pelo próprio, mas era clarão.
Contou Vieira aos pares e amigos que, quando entrou para o Colégio da Companhia de Jesus, em Salvador, sonhava em ser pregador, mas "o seu entendimento toldava-se como que encoberto por um escuro véu". Até que um dia, aos 17 anos, orando aos pés da Virgem, foi envolto numa luz extraordinária.
A partir daquele momento, passou a dispor de uma "tenacíssima memória", o que lhe permitiu pregar em público antes mesmo de ser ordenado sacerdote.
O episódio foi pela primeira anotado em 20 de julho de 1697, dois dias depois da morte de Vieira, na carta que o Padre Reitor do Colégio da Bahia mandou para a corte de Lisboa narrando a triste ocorrência. Esse primeiro biógrafo do grande tribuno -e não tributo- foi o padre João Antonio Andreoni, também conhecido como André João Antonil, autor do primeiro estudo geo-econômico do país ("Cultura e Opulência do Brasil").
Cinco meses depois, em 17 de dezembro, a mesma história é mencionada na oração fúnebre proferida pelo Padre Manoel Caetano de Souza, insigne cronista, durante as exéquias de Vieira em Lisboa. Acrescida de um detalhe: depois da luz, Vieira "alcançou uma admirável compreensão de tudo o que lia" (segundo o orador, palavras do próprio Vieira).
Na primeira biografia impressa, de autoria do Padre André de Barros (1747, meio século depois), deu-se a transformação -o clarão converteu-se em estalo fortíssimo que fez o jovem "experimentar na cabeça tão excessiva dor que (como referia quem lho ouviu) lhe pareceu que morria".
Mestre Aurélio conciliou a intensa luminosidade da primeira versão com o estrondo da outra e, no verbete "estalo", entre os seus vários significados, menciona "luz súbita no espírito" para explicar o brasileirismo Estalo do Vieira, que chega até nós como sinônimo de percepção instantânea, idéia fulgurante, "sacada".
A essa altura, é prematuro dizer que a rememoração de Vieira por intermédio da imprensa está sendo copiosa mas é, seguramente, surpreendente. E mais virá, pelo automatismo do processo mediático, o chamado "efeito bola-de-neve", que, por meio do mimetismo e da competição, é capaz de sensibilizar grandes contingentes para novos temas e sujeitos.
Neste ponto, esbarramos involuntariamente na resposta para uma questão colocada com insistência na atual onda de simpósios, colóquios, seminários, painéis e workshops -os chamados eventos- que hoje substituem-se às instituições. Não adianta disputar sobre a origem do atual processo de empobrecimento cultural -se a culpa é do Estado, da universidade, dos empresários, das editoras ou da mídia.
Essa ânsia de caçar culpados e, com a consciência aliviada, deixar tudo como está é típica de uma sociedade que ainda não alcançou um padrão mínimo de gregarismo e participação. A culpa da trivialidade imperante é de quem deixou de tomar a iniciativa para deflagrar a reversão. Em outras palavras, culpados somos todos.
Em condições ideais, a reação em cadeia ou círculo virtuoso que conduziria a um novo Aufklãrung, Iluminismo, deveria começar pela academia, já que intelectual tornou-se sinônimo de acadêmico. Para isso, seria necessário que a universidade se assumisse como produtora de conhecimento, recusando a condição secundária de processadora de informações.
O pavio também poderia ser aceso a partir da esfera pública, desde que em seus gabinetes e corredores transitasse um entendimento filosófico e um desprendimento existencial sobre o significado da presença de intelectuais no poder. As fundações empresariais poderiam concorrer para que o processo sistemático de gerar cultura e levá-la para o povo não se resumisse aos espasmos promocionais e badalativos.
As editoras, salvo as habituais exceções, têm sido meras casas publicadoras -compram títulos, imprimem e jogam num mercado que, apesar das megalivrarias, ainda dispõe de menos pontos-de-venda do que Buenos Aires, o que torna o nosso livro um produto para os privilegiados.
A grande virada dá-se quando a imprensa flagra-se a si própria fazendo exatamente o que lhe cumpre: polinizar o ambiente cultural. Uso propositalmente a palavra imprensa porque os nossos "media" (ou nossa mídia) ainda não se assumiram como os grandes mediadores entre a realidade mutante e uma sociedade ávida por esclarecimento.
Aquele "jornalismo superior" de que falava Otto Lara e Álvaro Lins (na realidade é expressão cunhada pelo patriarca da direita francesa, Maurice Barrès) consiste em metabolizar o saber acumulado nas estantes e agora na memória dos computadores, para ser assimilado continuamente pelo corpo social por meio dos outros agentes, públicos ou privados.
Vieira avultou a partir deste tricentenário porque no recôndito de cada redação, felizmente, ainda há um vieirista enfurnado, despreocupado com o "furo" sensacional, à espera de um "gancho" para acionar aquela gangorra que transforma o esquecimento em lembrança e esta em ações ou provocações.
Eis o grande estalo -combinação de luz, som e entendimento- que uma oportuna gralha suscitou. Ou ressuscitou.

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