São Paulo, sábado, 19 de julho de 1997
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Celulari não enfrenta riqueza de Don Juan

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Edson Celulari, contam, foi um Laertes do maior vigor e paixão, qualidades próprias do personagem, no "Hamlet", montado em São Paulo nos anos 80. É tido como referência do espetáculo, apesar do papel relativamente menor.
Difícil entender como deixa escapar pelos dedos um personagem como Don Juan, na peça de mesmo nome, de Molière. Don Juan tem muito do próprio Hamlet, na coragem, na crueldade, na sedução, na confrontação da fé.
Difícil entender como, por exemplo, o ator resolva sustentar uma interpretação realista ao enfrentar uma vítima sua, que volta aos vivos para a vingança. Nenhum horror, nenhum deslumbramento diante do espírito. A reação é superficial, em passagem crucial do personagem.
Mas é certo que cresceu a atuação de Celulari das primeiras apresentações no Rio. Em uma cena, especialmente, enfrenta em igualdade de criação o encantador Sganarello, de Cacá Carvalho.
É aquela em que Don Juan expõe com paixão (afinal!) e ferocidade a revolta, frente à hipocrisia dos homens, em argumentação não apenas ateísta mas da inteira falta de fé, em tudo. Surge inquestionável -e se entende então por que "Don Juan" causou revolta nos guardiões da fé e hipócritas em geral de três séculos atrás.
É o ápice da peça e a qualidade da atuação de Celulari leva Carvalho a um desdobramento de seu Sganarello, no contraponto, que parece beirar a epifania. Reúne-se a atuação à cenografia de Daniela Thomas (de oposição entre um céu claro e belo e uma Terra de metal) para o final, que pede a qualificação de espetacular.
Mas são alguns minutos, e "Don Juan" corre antes por duas horas. Duas horas em que uma faceta em particular, de Don Juan, inexiste. Talvez levado pelo naturalismo da própria interpretação, talvez até intimidado diante da fluente fantasia de Carvalho, que faz o seu engraçadíssimo empregado, Celulari parece esquecer que está, afinal de contas, numa comédia.
Parece temer o que há de patético em Don Juan, agarra-se à sedução exterior, até posa. Tem cenas que mais parecem quadros cômicos ao lado de Sganarello, mas não se permite formar a dupla nobre/servo, da tradição milenar da comédia. Entrega a cena a Carvalho, e assiste. Não oprime Sganarello, não é capaz de surrá-lo, perde metade da piada. E faz perder a peça.
(Vale aqui registrar a frustração de não ver Moacir Chaves, o encenador, repetir em "Don Juan" a fantasiosa direção de atores de "Esperando Godot", com Denise Fraga, e "Sermão da Quarta-feira de Cinza", com Pedro Paulo Rangel, em textos nem de longe tão engraçados.)

Peça: Don Juan
Quando: qui. a sáb., 21h; dom., 18h
Onde: teatro Sérgio Cardoso (r. Rui Barbosa, 15, tel. 288-0136)
Quanto: R$ 15 e R$ 20 (qui.), R$ 20 e R$ 25 (sex. e dom.), R$ 25 e R$ 30 (sáb.)

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