São Paulo, segunda-feira, 21 de julho de 1997
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Eles vendem o corpo vestidos de mulher

AUGUSTO PINHEIRO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

É um coquetel molotov: preconceito, violência, maratona sexual e transformação radical do corpo. Esses são os ingredientes da vida de adolescentes que se travestem de mulher e vendem o corpo nas ruas do centro de São Paulo.
Largaram o estudo cedo, alguns na 6ª ou 8ª série. Renata Veríssimo, 21 (os nomes de batismo dos travestis não estão aqui a pedido deles), é uma das poucas que terminou o 2º grau.
Algumas frequentaram a escola como travestis e, em geral, eram ridicularizadas por colegas e professores.
Dizem que se prostituem pelo dinheiro "fácil" -ganham até R$ 4.000 por mês. Garantem que largarão essa vida depois de juntar muito dinheiro. Mas enquanto isso não acontece, enfrentam um dia-a-dia pesado.
Atendem, em média, quatro clientes por dia. A maioria na faixa de 35 anos. Há dias em que fazem até 13 programas. "Esse foi o meu recorde", diz Renata. Cobram de R$ 50 a R$ 70.
Dizem que é comum, durante o trabalho, a polícia levá-los em um camburão até o Pico do Jaraguá, um local ermo na zona noroeste de São Paulo, de madrugada, e deixá-las no meio do mato. No caminho, "os policiais xingam, espancam", diz um dos jovens travestis.
Há também os clientes violentos: "Às vezes, o cara não quer pagar e bate na gente. Um já colocou revólver para mim: fiquei quieta, não falei nada", conta Renata.
Carmita Abdo, psiquiatra e coordenadora do Projeto Sexualidade do Hospital das Clínicas, diz que essa situação é mais grave devido a pouca idade: "São indefesos, imaturos, têm menos preparo para a vida e mais tendência a se envolver com deliquência, drogas".
A história de como viraram travestis é parecida: desde crianças já agiam como meninas. Milena Rios, 19, levava toalha e ursinho para enfeitar a mesa na escola. Danielle Simpson, 17, vestia as roupas da mãe e brincava de casinha.
"Há uma dificuldade de identidade sexual na fase da pré-puberdade, que é passageira", diz Carmita. "Mas, às vezes, é o prenúncio de um problema mais sério, um transtorno de identidade sexual em plena infância."
As relações homossexuais ocorreram também muito cedo -aos 10 anos para Milena Rios-, assim como o consumo de hormônio feminino. "Comecei a tomar aos 10, por influência de um travesti mais velho", conta Danielle.
O hormônio feminino (estrógeno) estimula o crescimento de seios, afina a voz, amacia a pele, inibe o surgimento de pêlos, diminui os músculos e torna o corpo mais feminino.
"Depois que você se transforma, é incrível. Já parte para trabalhar na rua porque ninguém dá outra oportunidade. Ninguém dá crédito para um travesti", diz Renata.
Família
Diferentemente da maioria, Danielle teve a aceitação da família. O pai, médico, até indicou o hormônio com menos efeitos colaterais.
Já o pai da gaúcha Bruna Dumont, 19, militar, expulsou-a de casa aos 16. "Resolvi viajar o Brasil todo fazendo programa. Fui ao Acre, Amapá, Santa Catarina, Rio etc.", diz ela.
A relação tempestuosa que Renata tinha com o pai foi abrandada pelo dinheiro. "Reformei a casa onde ele mora em Fernandópolis (SP). Agora, ele me chama de Rê, Renatinha. É uma hipocrisia."
Renata acha que teve influência no divórcio dos pais. "Ele nunca ficava perto de mim. Dizia que não respirava o mesmo ar." Hoje, ela mora com a mãe, com quem pretende abrir um mercadinho.

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