São Paulo, segunda-feira, 21 de julho de 1997
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A volta dos que não foram

GUSTAVO IOSCHPE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A coisa tá ficando preta. Aliás, roxa. Quem tinha medo de que o nosso ex-presidente refugiado em Miami fosse arranjar sarna para a gente se coçar agora não precisa mais ficar desconfiado: o homem quer voltar mesmo.
Talvez você -assim como eu- seja jovem demais pra ter votado no Collor em 89, mas deve pelo menos se lembrar das passeatas e dos manifestos pra tirar o camarada lá do Planalto. Ou pode até ter participado das passeatas, com um certo orgulho de estar sendo um pouco cidadão (e, olha só que conveniente, matando aula ao mesmo tempo).
Naquela época, lembro que a gente cantava músicas do tipo "O Collor vai ganhar/uma passagem pra sair deste lugar/não é de trem nem de navio nem de avião/mas algemado, num camburão/eta Collor ladrão (no ritmo de "As Águas Vão Rolar"). E, quando a nossa maravilhosa Câmara finalmente despachou o sujeito, ficou no ar uma sensação de que daquela vez a coisa engrenaria.
Ficou a esperança -ingênua- de que depois daquilo ninguém mais faria falcatrua, de que o Brasil tinha um certo jeito. Ou de que, pelo menos, o país se veria livre desse alucinado que ficava fazendo cooper, andando de jet ski e caça supersônico e, quando sobrava um tempinho, ainda conseguia confiscar nossa poupança.
Pois agora ficou claro que a volta dele é iminente. O pior é que tem muita gente que ficou compungida com essa imagem do garotão forte que foi sacaneado pelos velhos gordos de Brasília. E haver alguém em sã consciência defendendo esse pirado é -como diria o próprio- uma patuscada.
Parece que foi tudo em vão, todo aquele esforço. É uma vontade de dizer que a gente é otário mesmo, que não adianta se esforçar porque tudo é esquecido, relevado, substituído e abandonado.
A volta do Collor é o símbolo mais aparente da falência moral que é o Brasil.
Se você está ainda esperançoso -ou ingênuo- de que o pária vai ser rejeitado e voltar para o exílio, eu tiraria o cavalinho da chuva. Temos aqui um caso quase irresistível do maluco que aprendeu sua lição, que sabe se fazer de vítima e aproveitar a situação.
E o nosso eleitorado, você já deve saber, é -além de manso e bonachão- meio desmemoriado. Até os que se lembram de tudo correm o risco de não resistir, e até faz um certo sentido.
Um escritor chamado Elie Wiesel, um dos grandes memorialistas do Holocausto, narra em um de seus livros uma passagem tragicômica. Estão evacuando o campo de concentração, já no fim da 2ª Guerra, quando se diz pela milésima vez que os russos estão chegando. Wiesel comunica a notícia a seu vizinho na enfermaria, mas este já não se abala. Diz já estar vacinado contra as falsas promessas de salvação e que vai ficar parado na cama -o que, naquela situação, significava morrer. E disparava: "Confio mais em Hitler do que em qualquer outra pessoa. Ele prometeu que ia aniquilar todos os judeus e até agora ele é o único nesta guerra que vem cumprindo suas promessas".
Com o Collor é mais ou menos a mesma coisa. Você já sabe, de antemão, que é um pirado. Até é uma certa vantagem porque, nesse Brasil quase tão confuso e ilusório como um campo de concentração, não duvido de que exista gente que prefira a certeza de um destrambelhado à engabelação de um intelectual sério.
E vão ficar por aí, estirados nas macas desta enfermaria que é a nossa vida pública, com um sorrisinho de deboche de quem sabe que a coisa vai ficar... roxa.

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