São Paulo, segunda-feira, 21 de julho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Suicídio assistido e doente terminal

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

Só os conhecimentos e a consciência do médico podem definir quando o tratamento deixa de ser lógico
VICENTE AMATO NETO e
JACYR PASTERNAK
Suicídio assistido pode não ter nada a ver com doença terminal: alguém pode optar por cessar de viver porque está envolvido com algum problema ou condição com que não consegue conviver e que não constitui necessariamente acometimento terminal.
Não nos parece que caiba discutir a validade do suicídio de per si, e, seguramente, a noção de que a vida não pertence à pessoa, mas a um poder superior, tem conotações religiosas, não aceitas por todos.
Acreditamos até que, em ocasiões especiais, médicas ou não, o suicídio seja válido. Temos absoluta convicção, no entanto, de que esculápios não podem e não devem auxiliar ou participar de nenhuma espécie de suicídio, como também não é correto que cooperem com estamento que execute pena de morte, onde esta for legal. Por seu turno, a eutanásia, que se refere à provocação ativa e voluntária da morte em outra pessoa, é repugnante para nós em qualquer circunstância.
A profissão é a antítese desse tipo de atitude, porquanto somos médicos, curamos quando podemos, tratamos o que sabemos e, provavelmente, precisamos aprender a desistir, a parar de insistir quando não temos mais possibilidade de ajudar ou de manter uma vida digna. Aí, sim, estamos falando do doente terminal.
Cremos que há um momento, na história natural de doenças, em que a medicina não tem chance de oferecer nada significativamente útil aos pacientes. Possui, eventualmente, a capacidade de prolongar uma vida vegetativa em Unidade de Terapia Intensiva, aumentando o sofrimento do paciente e da família, ampliando as despesas, a troco de absolutamente nada.
É fundamental que se defina com clareza a situação interpretada como terminal. Não convém que ela dependa da falta de conhecimento do médico. Em outros termos, o profissional precisa ter certeza de que fez realmente tudo o que era factível, estando atualizado quanto a seus conhecimentos para adotar essa convicção.
É essencial, ainda, que, na literatura médica, esteja adequadamente estudada a etapa em que o paciente se apresenta, existindo estatísticas definindo claramente o mau prognóstico do caso e a futilidade de futuros esforços no tipo de contexto vigente.
Estatísticas não dão segurança absoluta, mas nos sentimos mais do que acostumados a trabalhar com probabilidades, pois, afinal, a medicina é essencialmente o sopesar destas.
Afigura-se inteiramente válida e moralmente decente abstenção no sentido de efetuar esforços exagerados e desmesurados quando está claro ser fútil esse tipo de atitude. Encontra-se respaldo inclusive em instruções religiosas; assim, Pio 12 explicitamente disse que não é obrigação moral do médico promover excessos terapêuticos quando não há o que fazer.
Infelizmente, apenas os conhecimentos e a consciência do médico são capazes de definir exatamente quando o tratamento deixa de ser lógico e passa a configurar futilidade.
Se o facultativo acompanha um paciente há longo tempo e se há com ele ligação adequada, ou seja, relação médico-paciente correta, é possível conversar durante a doença e deixar que o interessado conduza o evento. Mesmo nessa fase, julgamos perfeitamente viável e razoável perguntar o que ele quer que seja executado quando nada mais há a ser feito. Na falta desse entendimento prévio, valem o bom senso e a consciência do médico.
O comportamento pode e talvez deva ser discutido com colegas e outros componentes da área da saúde; a propósito, destacamos a enfermagem, cuja notória empatia com o enfermo ajuda muito a embasar a decisão, nunca coletiva e sempre dependente, naquele momento, do médico.
Fácil não é, mas, cá para nós, também não corresponde a algo tão difícil, e, provavelmente, muitos já assumiram este tipo de responsabilidade, alguns, até, muito cedo. Por exemplo, médicos-residentes, em prontos-socorros, por vezes confrontam-se com essa modalidade de acometimento, com necessidade de optar.
A maior parte dos colegas sofre com esse tipo de ocorrência, mas nem por isso desiste da medicina, e, na verdade, a coisa não é tão dramática.
Quando se delineia realmente doença terminal, esforços imensos redundam num grande nada a curto prazo, de modo que fica pouco espaço para uma dor de consciência.
De fato, o grande problema psicológico é dos que não sabem parar ou medir quando seus esforços são úteis ou fúteis. Isso tem até a designação de "complexo de Jeová", maligno na profissão médica, gerando a idéia da onipotência, que, com frequência, esconde o medo da própria impotência.
Saber parar na hora adequada é mais um dos muitos sinais de maturidade, merecendo constantemente obediência à obrigatoriedade de agir respeitando profundamente o doente, abolindo ou diminuindo o sofrimento e concedendo dignidade ao ser inexoravelmente atingido.

Vicente Amato Neto, 67, infectologista, é professor-titular do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

Jacyr Pasternak, 53, infectologista, é médico-assistente da Divisão de Clínica e Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da USP.

Texto Anterior: Ensinamentos mexicanos
Próximo Texto: Novo piso na saúde; Religião; Meio ambiente; Três anos; Expansão da Otan
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.