São Paulo, segunda-feira, 21 de julho de 1997
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Veneza apoiou e traiu o aliado oriental

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
DO ENVIADO ESPECIAL À EURÁSIA

Deve-se a Átila e seus hunos da Ásia Central o primeiro povoamento mais consistente da região de Veneza. A laguna no Adriático, ocupada por esporádicos caçadores e pescadores, recebeu inúmeros fugitivos da invasão bárbara do século 5º. Mas, com o tempo, muitos acabaram retornando a seus pontos de origem.
Pressionados por germânicos lombardos, novos fugitivos, entre eles representantes do clero, ocuparam as ilhas cem anos depois.
Ali, uma confederação foi formada, mas sem plena autonomia. Essa proto-Veneza devia obediência política a Bizâncio, hoje Istambul, sede do Império Romano do Oriente.
Foi no século 8º que o agrupamento de ilhas passou a ter seu próprio líder, o doge, e a ganhar relativa independência.
Embora formalmente um ducado do Império Romano do Oriente, a cidade paulatinamente afastou-se da esfera do imperador.
No século 9º, com a consagração da basílica de San Marco e o "rapto" dos restos mortais do evangelista -até então guardados em Alexandria (Egito)-, Veneza demarcou claramente a separação.
A adoção de são Marcos como patrono -em substituição ao bizantino são Teodoro- foi um gesto simbólico definitivo.
A basílica, erguida sobre um plano em forma de cruz grega, com notável inspiração bizantina, e o vizinho Palácio Ducal, a sede do governo, permanecem até hoje como emblemas do Estado e do esplendor venezianos.
A posição estratégica e a proximidade com o Império Romano do Oriente conferiram a Veneza uma situação privilegiada na economia. No início do século 11, a cidade bateu, ao norte, os piratas eslavos e, aliada a Bizâncio, venceu a ameaça dos normandos ao sul.
Tornou-se, com isso, uma espécie de guardiã, no Ocidente, do Império Romano do Oriente, do qual passou a receber tratamento preferencial. Os venezianos estavam livres de taxas e outros empecilhos no comércio com Constantinopla. Os mercadores da próspera cidade-Estado praticamente monopolizavam o fluxo de trocas com o leste, abrindo as portas para um período de grande expansão.
Entre 1202 e 1204, Veneza desferiria um violento golpe contra seus históricos parceiros orientais.
A cidade, na condição de grande potência européia, procurava tirar proveito das Cruzadas -as expedições estimuladas pelo poder papal para reconquistar lugares sagrados sob domínio dos "infiéis".
No ano de 1199, o conde de Champagne propôs a Quarta Cruzada, para recuperar Jerusalém. Veneza foi encarregada, e para isso bem paga, de providenciar armas e embarcações para a expedição.
Impôs, contudo, seus interesses. Pretendia obter a reconquista da colônia de Zara, capturada pelo rei húngaro, e não resistiu à tentação de, a meio caminho, tomar Constantinopla. Àquela altura, já se consolidara o cisma Ocidente-Oriente, entre o cristianismo latino e o ortodoxo (1054).
Em 1204, as tropas cristãs latinas invadiram a cidade de Constantino para promover um dos mais lamentáveis episódios da história européia e universal.
Milhares foram barbaramente massacrados, e a cidade, estupidamente saqueada.
O símbolo mais visível do episódio -conhecido como o Saque de Constantinopla- é a quadra de cavalos moldados em bronze que ainda pode ser vista na basílica de San Marco.
Em Veneza, foi colocada no Arsenale antes de ornamentar a igreja. Os cavalos que hoje estão na fachada são réplicas -os originais foram transferidos para o interior.
Se a tomada de Constantinopla rendeu frutos imediatos, historicamente foi um erro.
A conquista da cidade pelos turcos otomanos, em 1453, e os riscos a que expôs a Europa Ocidental não deixam de ser consequências tardias do episódio.

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