São Paulo, quarta-feira, 23 de julho de 1997
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Leitura de Hopkins é exercício para o espírito

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O padre jesuíta Gerard Manley Hopkins (1844-1889) escrevia poemas estranhíssimos, de grande virtuosismo técnico, de alta pressão.
Não uso o termo "pressão" por acaso; a poesia de Hopkins joga com os seus contatos -compressão, impressão, repressão, expressão, se é que podemos redefinir assim, nesse cacho de palavras, um conceito importante em seu vocabulário (o de "instress"). Mas vá lá traduzir "instress"... Vá lá traduzir Hopkins.
Acaba de sair, pela editora Perspectiva, "Hopkins. A Beleza Difícil", que reúne as admiráveis (e difíceis) traduções dos poemas de Hopkins feitas por Augusto de Campos. Já dispúnhamos de um livro de traduções do poeta, maior do que o da Perspectiva, muito útil, mas esteticamente menos ambicioso, feito por Aíla de Oliveira Gomes para a Companhia das Letras.
Comparar traduções é um esporte interessante, que só beneficia quem o pratica; deixo-o a cargo do leitor. O bom é que Hopkins volte à baila, que intrigue mais um pouco o público brasileiro, e que dificulte um pouco mais a vida de nossos poetas e leitores.
Hopkins era um poeta religioso. Seu maior poema, "The Wreck of the Deutschland" (O Naufrágio do "Deutschland") narra triunfalmente a tragédia que se abateu sobre os passageiros de um navio alemão que encalhou nas costas arenosas da Inglaterra em 1875.
A bordo, estavam cinco freiras alemãs, expulsas de seu país em função do anticatolicismo de Bismarck.
Digamos que o tema é ingrato, para dizer o mínimo. Nosso poeta jesuíta parece jogar com uma coincidência: a de que o nome do navio, "Alemanha", é o mesmo de um país que deu origem a Lutero, o protestante ("O Deutschland, double a desperate name!").
Duas sinédoques, a Alemanha pelo navio, as cinco freiras pelo rebanho inteiro, organizam o poema, rico em metáforas e paronomásias que surgem como álibis milagrosos para a má-fé do motivo. Nada mais apropriado para um católico como Hopkins, num país de maioria protestante como a Inglaterra.
Mas isso não importa muito; o jesuítico, o que há de duvidoso nisso, deixam-se vencer pela extraordinária inovação técnica, pelo rigor trêmulo, pelos pathos, ao mesmo tempo místico e racional, da poesia de Hopkins.
Ele faz poesia religiosa em alto estilo. Poemas místicos, poesia religiosa, é coisa que a sensibilidade moderna tende a rejeitar. Justamente alguns poetas tentaram escapar do modernismo pela via da elevação, contra o poema-piada, o poema-kodak, o poema-cristal, o poema-colagem, procuraram imergir no oceano do êxtase, nas imensidões do mistério, no negrume de odes infinitas.
O resultado nem sempre é bom, e mesmo sendo, não agrada. Veja-se o caso de um Paul Claudel, e de suas "Cinco Grandes Odes": a amplidão, a umidade, o descerrado daquilo tudo parecem resultar mais de uma intencionalidade cabeça-dura, de uma pretensão verbosa ao absoluto, do que de uma real comunhão da poesia em Cristo.
A teimosia, mais do que a litania, é o que parece orientar também as laboriosas (e mesmo assim bonitas) versificações de um Charles Péguy. São estrofes e mais estrofes, repetitivas, quase minimalistas; e o que deveria ser o som de sino tocando ao longe na planície tem um pouco o efeito de um gongo repetindo masoquisticamente um recado de sacrifício e opressão.
No Brasil, podemos pensar se o dilema de Murilo Mendes não foi o de fazer poesia religiosa sem abandonar a brevidade, o humor seco, construtivo, do poema modernista. O resultado, a meu ver, descambou muitas vezes para o prosaico. Em Jorge de Lima as intenções eram outras, mas até hoje é difícil dizer se deram certo.
Provavelmente, o que está em jogo na poesia religiosa moderna, o que a torna insuportável, é o fato de que, no limite, a poesia profana, a poesia normal, tomou a nossos olhos, tomou em nossos corações, o papel que a religião desempenhava antigamente. Poesia e religião são filhas gêmeas de nossa sede espiritual.
Numa época científica e ateísta, um poema sobre um bule de chá ou sobre uma bicicleta atende satisfatoriamente à nossa pulsão pelo absoluto. Numa época religiosa e ortodoxa, Dante Alighieri ou Milton podiam usar o dogma "objetivamente", enquanto seus versos falavam da imensa heresia, do belo e altivo pecado, do imenso e profano fato que é nossa existência humana.
E, se religião e poesia se tornaram irmãs em nosso século -a religião tornou-se mais subjetiva (questão de crença de cada um), a poesia mais objetiva (problema de visão e técnica)-, ambas convergindo numa "vaguidão precisa", o projeto de uma poesia religiosa tende, como qualquer incesto, a gerar monstro.
Como é que Hopkins livrou-se disso? De várias maneiras. Em primeiro lugar, concebe ou reinventa a idéia de um Deus terrível, persecutório, externo. Mas esse procedimento, se dá coerência à sua poesia, nos afasta dela também.
O que nos aproxima dela é o segundo procedimento, o virtuosismo técnico. O verso de Hopkins, a dor de cabeça dos tradutores, utiliza procedimentos muito complicados. De um lado, há o que ele chamou de "sprung rythm", verso saltado, alheio às contagens da métrica inglesa tradicional.
Nesse tecnicismo todo, posso perceber um sentido. Quem conhece os diários de Hopkins sabe de que modo ele era atento aos acidentes naturais, o quanto se preocupava em definir a forma de cada ganho de árvore, o esquema de cada flor. Foi um matemático moderno "avant la lettre". Ou seja, procurava no acaso vegetal, na geometria dos brotos e dos galhos, algo como uma geometria divina.
Hoje, dispomos da teoria do caos e dos fractais, para dar conta, ao que parece, das harmonias que Hopkins incluía. Ele era um espírito matemático e um religioso perturbado pela maldade de Deus. Mais do que a voz do poeta, é a voz desse Deus, combinador de acasos, orquestrador violento dos horrores do mundo, que parece ressoar nos seus poemas; o ato de ler Hopkins equivale a um verdadeiro exercício espiritual -o que sempre é bom, seja qual for a religião que tenhamos.

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